segunda-feira, 27 de abril de 2015

Carta a um irmão solitário


O fim de um ciclo, de uma dor,
da espera de uma experiência,
foi-se o tempo da dor,
foi-se embora um horizonte plúmbeo
com o peso dos corpos sobrepostos,
foi-se também a ingenuidade, uma flor,
levada pela levedura de uma bebida amarga que não se quer tomar,
que ao adentrar na boca é tão ensope como o fel
mas ao adentrar nas entranhas se converte em mel; doce, cristalino, 
como se o estômago passasse a ter glândulas salivares e sorve-se o que era bom. 
Na boca um gosto amargo de tragar, mas que com o tempo vai se transformando em água para passarinho beber, onde os beija-flores bicam matando sua sede.

Aqui, sepulta-se um passado de uma vez.
Um ciclo de uma vida se encerra. Nunca mais aquela dor. Nunca mais o desejo de vingança.
Eu perdi com aquelas armas, mas ganhei em deixar aqui essa batalha sem sentido, essa guerra estúpida. Ao baixar as armas eu venço, não por ser fraco, mas por não jogar mais esse jogo. Lutar é perpetuar a memória.

Não vou mais lamentar. Eu venci. Eu venci... Adeus

   

    

segunda-feira, 13 de abril de 2015

Bolinha de gude ... Ou, simplesmente peteca



Pode parecer nostalgia escrever sobre um passado que não volta mais, mas nostalgia também é um lugar, uma guarida em tempos de hiperindividualismo. Pode ser um subterfúgio para acharmos o aconchego absorto pelas nuvens que foram testemunhas de uma época em que ser feliz era dividir, mesmo que fossem as disputas, o tempo que tínhamos para estarmos juntos e não o acelerarmos para de novo, ficarmos sós.

Em tempos de levantamento de muros altos, com câmaras de vigilância, vigias diurnos e noturnos, cães de guarda, me recordo da boa e velha Cohab em tempos de infância. Lá, nos recônditos do Brasil distante, numa cidade igualmente distante, num bairro à época muito distante, eram comuns as casas que não possuíam muros, fruto em parte da falta de dinheiro, em parte como herança de sociabilidades interioranas de pessoas recém-chegadas à capital, São Luís, cujas práticas ainda não separavam com tanta ênfase o que era público do privado. Por vezes as coisas se confundiam.

Sem muros, nós, as crianças das ruas, adentrávamos nos terraços e quintais sem pedir licença, e nem por isso era uma afronta. Adentrávamos para pegar algo emprestado ou apanhar de volta o que nos pertencia, já emprestado, sem ter a esquizofrenia de chamar a polícia ou considerar tal ato um roubo. Era comum dizermos depois o que havíamos feito.

As casas com terraços de areia, ou quintais, eram nossas favoritas.  Ainda sem cimento podíamos desfibrar nossas imaginações à procura da brincadeira que nos sobreviesse sem o risco de desfibrarmos nossas peles ralando na asperidade do terreno, afora o belo espetáculo em dias de chuva quando os quintais alagados absorviam lentamente a água do céu.

Por vezes escolhíamos a de peteca, também conhecida por bolinha de gude. Extremamente baratas, mesmo para crianças pobres como nós, coloridas, multicores, tamanhos, de múltiplas formações internas, curtíamos as mais exóticas tentando entender como o artesão era capaz de desenhar um interior tão caleidoscópico. Não sabíamos que a fabricação era industrial e não artesanal.

Íamos até o venderão, lá na feira da Cohab, com nossos recipientes de plástico de margarina pedir que enchesse tal vasilhame. Nunca esquecíamos de pedir um bolão (a maior das bolinhas de gude, servia como capitão, a bola guia para acertar – matar – as outras).  Mas o barato não era comprar, e sim, conquistar, jogar apostado. Essa era uma das poucas brincadeiras que nossos pais permitiam que jogássemos apostado. Temiam tal prática em jogos como bilharina, Sinuca, até mesmo em futebol.

Ganhar do adversário, leia-se, amigos de infância, e raras vezes, desconhecidos, era como carregar no peito um feito brioso, uma capacidade, uma maestria, “um quase dom”, capaz de fazer os outros te respeitarem mais, ou pelo menos, não te enxergar como oponente fácil de ser derrotado tirando de ti aquelas bolinhas que se carregava com tanto esmero.

De tanto se jogar as bolinhas fricçavam uma nas outras deteriorando-se. Ninguém queria os “cacabulhos”, “cacarecos”, as mais velhas e imperfeitas, irregulares, desvalorizadas no mercado de petecas. Poucas pessoas as aceitavam como pagamento.

Dois jogos se destacavam dentro da peteca: triângulo e borroca. Triângulo consistia em depositar um certo número de bolinhas dentro exatamente de um triangulo desenhando no chão de terra distante de uma linha reta chamada de “marcação”, usado como referência de posição e definidor de quem seriam os primeiros a jogarem. Era assim: todos os jogadores ficavam na mesma altura do triângulo e jogavam seus bolões, capitães, em direção à linha, quem mais se aproximava ou mesmo ficasse em cima, “na linha”, era o primeiro a jogar, quem ultrapasse, seria o último. Definido a ordem dos jogadores, era a vez de tentar acertar a maior quantidade possível e retirá-las do triângulo. Quem retirasse todas, além de vencer aquela rodada, ficava de “matança”, ou seja, poderia eliminar outros bolões, jogadores, além de não ser eliminado, a não ser por quem também estivesse de matança.

Por vezes usava o recurso “firifico”, “firiquite”, prerrogativa de defesa que dava a chance ao jogador de não sair do lugar para não ser atingido, ele perdia a vez de jogar, mas não se expunha. Desta feita, esquivava-se de ser morto. Uma outra tática, ainda mais engraçada era: “pedir sujo”, ou seja, quando sua bolinha estava protegida por um obstáculo evitando ou impedindo de ser atingida, ai, o adversário pedia exatamente o contrário: “pedia limpo”, quer dizer, exigia a retirada dos obstáculos. Quem tinha o direito? Já não me lembro mais.

Eu adorava “bilar”, ou seja, acertar na mosca o outro capitão, mas odiava “alisar”, quer dizer, perder todas as bolinhas e ver meu pote de margarina ficar vazio. Quando isso acontecia era hora de assistir as minhas antigas bolinhas deslizarem no chão macio sendo lançadas pelas mãos de novos donos. Ou então, esperar uma próxima oportunidade de voltar à venda para encher o meu pote de novo.

A outra brincadeira era a Borroca. Três buracos equidistantes um do outro, da fundura que um calcanhar poderia escavar. Exatamente! A borroca era feita girando-se em 360 graus um dos calcanhares no chão fazendo um buraco até onde era possível. A regra consistia em acertar cada buraco ida e volta. Era uma espécie de golfe sem grama, sem bandeira, sem taco e com uma bolinha menor. Quem conseguisse atingir os três buracos duas vezes venceria o jogo.

O que se escondia por detrás daquela “inocência” era a ausência da complexificação da vida urbana, calcada na lógica da indiferenciação, do individualismo e liberalismo da competitividade que supostamente privilegia os mais fortes. Com o processo de aceleração urbana, desmatamento, crescimento exponencial dos bairros, distanciamento dos centros da cidade, obrigando as pessoas a saírem cada vez mais cedo de casa, aumento da violência, as crianças de hoje são obrigadas a não saírem de casa, resguardadas em seus condomínios que prometem uma vida “própria” protegendo-as do mundo lá fora. É claro que as brincadeiras mudam, assim como as pessoas e as épocas, mas o que causa torpor é exatamente uma falta de reflexão sobre as consequências dessas mudanças nas pessoas.

O processo de aceleração da vida naturalizou tudo, como se a única perspectiva possível fosse o do não encontros, ou dos encontros dissuadidos pela falta de contato. É um contato que não conta, é um piso cimentado que impede o contato do calcanhar com o chão e que ao invés de absorver a água da chuva canaliza-a para o escoadouro da rua, por um cano gigantesco, de diâmetro enorme esvaziando rapidamente a água como se dela quiséssemos nos livrar.

É por isso que não se vê mais crianças brincando na chuva, ou é cada vez mais raro, elas não adentram mais as casas dos vizinhos, elas estão guarnecidas por guaritas. As crianças não se encontram mais nas ruas, elas jogam Playstation pela internet.

As mãos das crianças não são mais hábeis em manusear bolinhas coloridas, multiformes, elas hoje dominam outras técnicas, como as de brincarem sozinhas com celulares, ipad’s, tablets.

Vamos evitar mudanças? Não, o tempo não para, mas não foram os avanços tecnológicos que distanciaram as pessoas, a técnica sempre existiu, foram os nossos desejos de deixarmos tudo o que passou ser sinônimo de obsoleto, para trás, como se necessariamente o novo tivesse que aplacar o passado, e não conviver com ele.

O engraçado é que a indústria cria a cada dia milhares de novos brinquedos, todos esquecidos e deixados num canto quando o frisson do novo acaba, mas as antigas brincadeiras não desaparecem das memórias dos que um dia usufruíram delas.

As imagens hightech criadas por supercomputadores criam mundo novos povoando a imaginação de novas crianças, mas quem pode decifrar o mistério das luzes multicores e multiformes escondidas no interior de uma bolinha de gude?               

            

Entrevista com Arton, de Sirius. Parte II

  Entrevista realizada no dia 14 de fevereiro de 2024, às 20:00, com duração de 1': 32'', gravada em um aparelho Motorola one zo...