sexta-feira, 24 de maio de 2013

De olhos bem fechados?

Entre a balança e a ferroada, ele deslinda ora com a cabeça, ora com o estômago. Do estômago expõe a visceralidade, com a cabeça, a necessidade de não pesar só para um lado do prato da balança, levando a moça de olhos fechados a retirar as vendas e reequilibrar os pesos. Sempre usou mais o estômago, para tudo. Agora num dos pratos ele se encontra com seu ferrão. Se a balança pender para o seu lado o animal sobe, passa para o outro e ferroa a moça da balança. O que será dela ferroada? Talvez perca o  julgamento sensato, o controle, o falso equilíbrio. Talvez passe a ser visceral, estomacal, noiada com a vida, evite pré-seleções. Talvez enxergue aqueles que busquem o equilíbrio, mas só conseguem ser o que são: ferroados, feridos, viscerais, dionisíacos. Mas não à-toa ele está lá. Ele mede seu peso. Talvez o que atraia seja o delicado equilíbrio, por isso procurou a moça de olhos vendados, exatamente para saber de sua medida. Talvez para testar sua sedução em ferroar quem não se deixa ser. É uma dança da balança, um álter sem chão, uma profusão de liberdade por estar flutuando, apesar de seu peso. O engraçado é que na outra ponta não há ninguém, a não ser o reflexo do seu desejo de ferroar. É ele quem no jogo do sobe e desce, da ascensão e descenso, precisar medir até onde é pulsão, desequilíbrio, desmesura. O controle não é dele, não está no controle, e sim, da moça de olhos vendados, que mesmo enxergando o delicado equilíbrio da balança decide por ser ferroada, por inteiro.          

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Festa do Divino Espírito Santo: tradição ameaçada

No último dia 18 de maio ocorreu a festa de encerramento do Festejo do Divino Espirito Santo, na cidade de Alcântara, no continente maranhense, ainda que no dia 19 tenha ocorrido o último cortejo e o apagar somente no dia 20. Tal festa, nascida no século XIII em Portugal, constitui uma das maiores expressões culturais do Maranhão, pelo seu caráter religioso, pelas ilações sociais que conotam para a comunidade de Alcântara, por ser um elemento de resistência e permanência de uma tradição que não deve desaparecer.

Em nome de uma necessidade de atrair público, a prefeitura da cidade contratou uma grande banda de forró, de renome nacional para a grande noite do dia 18, sábado. Pode parecer casuísmo, implicância de um chato retrógrado que é contra inovações  e "modernismos". Mas não é. 

Tudo tem bom senso, limite. Não vou esmiuçar aqui minha concepção sobre a indústria cultural, sobre o conceito de música, já o fiz ao longo de quase dois anos nesse blog. A questão não é contratar ou não uma banda de forró, mas a desvirtuosidade do sentido em si, ou seja, atrair público, atrapalhar LITERALMENTE a festa em nome de uma grandiloquência, de ser atrativo turisticamente para uma festa que existe desde o século XIII e que no Maranhão resiste há pelo menos 200 anos.

A noite, mesmo antes do encerramento da missa, quando os músicos aguardavam do lado de fora da igreja para começar o cortejo, o show da primeira banda, que iria abrir a noite de shows, começou a tocar atrapalhando o cortejo. Ainda que tenha parado de tocar quando o cortejo passou em frente ao palco, pela desmesura dos equipamentos, pela desproporção entre música acústica e música eletrônica (parafernália de um grande palco, de uma grande estrutura), quando voltaram a tocar o som dos instrumentos de metais simplesmente ficou abafado, pervertendo todo o sentido da festa. 

O centro das atenções é a Festa do Divino Espirito Santo, não as bandas de forró. Pessoas de várias lugares do Brasil e do Maranhão estavam ali pela força da tradição, por aquilo que teima em não morrer, não estavam em busca de novidades, de pirotecnia ou de show business de grande escala.

Tradição e modernidade podem conviver, mas temos que acabar com essa concepção equivocada de que a modernidade tem que ser prevalecente, de que o mais é melhor que o menos, que a grandiosidade de um palco é mais importante que uma procissão, que um cortejo. 

Como o show acabou altas horas da madrugada, os jovens não apareceram para a missa de domingo, ou seja, o sentido de fato foi desvirtuado. São os jovens os futuros imperadores, imperatrizes, mordomos e caixeiras. Se festas interpelarem o sentido da Festa do Divino, como se manterá tal prática cultural? Isso sem adentrar no fato de que, por um acaso, onde foram parar as manifestações culturais maranhenses: tambor-de-crioula, cacuriá, lelê, dança de São Simão, baralho, pela-porco, bumba-meu-boi e tantas outras que não chocariam com o sentido da festa? 

A comunidade reagiu prontamente durante a missa do domingo, protestaram, reclamaram de falta de apoio e incentivo, ou seja, dinheiro para uma grande banda de forró tem, para a festa....

É necessário sim a critica, não podemos pasteurizar tudo como se tudo fosse natural ou naturalizado, como se tudo fosse banal. A comunidade precisa se organizar e estabelecer os parâmetros do que querem, afinal, são eles os atores principais, sem eles, a pomba do divino não alça mais voo.                                

quarta-feira, 15 de maio de 2013

O fim da experiência

Duas "sensações". 

Assisti na quinta-feira, dia 09 de maio, na companhia de minha namorada Aline Mendes, no novo estádio Castelão, agora Arena Castelão, em Fortaleza, Ceará, reformado para a copa do mundo de 2014, o inesquecível show do ex-Beatle, Paul McCartney. A arena estava completamente lotada. Foram 3 horas de show, voltou ao palco 3 vezes, celebrou um noivado, se emocionou, foi absurdamente simpático com o público, se esforçou em falar português, cantou novas e velhas músicas e, sobretudo, não deixou de fora os grandes sucessos dos Beatles.

Para um público que nunca teve a oportunidade de vê-los de perto, ver o Paul McCartney era como reviver a sensação, a "experiência" vivida naqueles tempos. Havia gente de toda idade e geração, mesmo quem só ouviu falar deles quando muito tempo depois de desaparecidos. 

Segunda "Sensação". 

Ontem, reuni meus alunos das disciplinas Teorias da História e Introdução à Pesquisa Histórica no auditório do prédio da Arquitetura para exibir o longa metragem: "Nós que aqui estamos, por vós esperamos", 1998, de Marcelo Masagão. Um documentário viso-textual sobre o século XX. Quando acabou abri o debate e foi nítida a percepção de que o documentário falava sobre um tempo muito, muito distante, como se o século XX ocorrera há pelo menos 100 anos atrás. 

Em parte, isso se deve ao que Jean Baudrillard chamou de aceleração do tempo, hiper-real, hiperespaço, quando temos a sensação de que passado e presente são cada vez mais descontínuos, desconexos. A aceleração do tempo elimina a percepção sobre a história porque não há condensação dos fatos, não há reflexão, se não há reflexão, não há história. Vivemos uma espécie de presente contínuo. 

Por isso, buscamos cada vez mais remakes, filmes retrôs, pastiches, coisas blases, como se somente o que se viveu no passado tivesse sentido e real significação. E isso não é de todo absurdo. Uma parte advém da sensação de que o foi é sempre melhor do que está, uma idealização do passado, uma construção a posteriori do que se viveu, outra parte, isso está relacionado com o fim da experiência. 

A noção de simulacro, de coisificação das relações sociais, de consumação de tudo, nos projetou para um amálgama social em que tudo passou a ser pasteurizado, posto que tudo passou a ser desvinculado de sua matiz espiritual, no sentido da vivência radical, sensível, emotiva e não apenas participativa, em que estar em lugares e com pessoas não traz outro sentido a não ser aparecer, ser visto, "causar", como se o referente de fazer algo estivesse desatrelado da "experiência" de se viver algo intensamente.

E é sobre isso que nos fala Giorgio Agambem. Não há mais experiência porque perdemos a capacidade efetiva de uma vinculação pautada nos desejos mais pungentes, mais sinceros de nós mesmos, de experienciar de fato aquilo que nos subjetiva, e sim, fomos tragados pela ausência do referente que busca a sensação do desejo do outro, das vozes que não são nossas e, por conseguinte, são derivações de outras vozes ditando o que pode ser vivenciado, compartilhado. Estar fora disso é ser lançado ao opróbrio, a invisibilidade, a lógica da exclusão. 

O que leva multidões a verem o Paul McCartney, além de seu estrondoso talento e carisma? Há sensação de reviver um período, um tempo em que as pessoas gozavam de experiências, um tempo em que as músicas possuíam um sentido em si, não eram produzidas numa escala e lógica industrial em que um mesmo hit poderia simplesmente ser substituído por uma outra letra, já que a lógica de reprodução de sucesso se encarregaria de fazê-la ser executada ad nausea. Quando um cantor fazia uma musica estava relacionado a uma sensação singular, a uma experiência particular, uma atmosfera em que, mesmo com os elementos da indústria cultural elaborando um sistema de reprodutibilidade, tal configuração não estava completamente desvinculada do que as pessoas sentiam, desejavam, queriam, ainda que de forma alienada, levado por um impeto qualquer.

É claro que os Beatles não fugiram da lógica da indústria cultural, muito pelo contrário, foram a maior expressão dela em todos os tempos, mas havia um espirito de época perturbador, uma vontade de mudança do mundo, por isso, seu estrondoso sucesso se coligava com um momento de transformação do mundo.

E hoje? Quais sensações a música nos liga? De que experiências vamos falar, senão as cada vez mais individualizadas?  

Os meus alunos tão jovens ficaram abismados ao verem um século tão radical, A era dos extremos, no dizer de Eric Hobsbawn. Extremista em todos os sentidos: politico, sexual, religioso, comportamental, educacional, cultural, social, econômico. Essa realidade permeada de ideologia, de tanta potência lhes parece cada vez mais distante. 

Se emocionar ao ver o Paul McCartney é como sentir numa bolha, numa redoma que nos isola de um mundo hoje tão pragmático, individualista, competitivo, agressivo, cuja ação de acumular é mais importante do que a de poetizar, amar, chorar. Ouvir Love me do, Yesterday, Eleanor Rigby, Hey Jude, Band onde the run, Live and let die, Here today, Something, Come togheter, Ebony and Ivory, ainda que seja por apenas miseras 3 horas, num estádio lotado, cheio de luzes, pirotecnia, efeitos visuais, tecnologia de última geração, é sentir-se numa espaçonave, num disco voador, teletransportando todos os passageiros para o passado, exatamente para aquele século radical, extremista que nos parece cada vez mais distante e, por alguns instantes nos fazer esquecer da selva feroz, mordaz, existente fora do estádio.

É para isso que existe a poesia, a beleza, a sensibilidade. Ninguém aguenta competir o tempo todo. Por isso a gente se emociona e se embala ao ouvir And I love her.

Em Goiânia até os gafanhotos subiram ao palco, inundaram o show, uma nuvem deles, ficaram ao piano com Paul, subiram pelo seu corpo e um deles virou amigo do ex-Beatle. Os gafanhotos não quiserem "out there" (tema da turnê), se sentiram convidados, literalmente não quiseram ficar "lá fora".

Um gafanhoto sendo amigo de um besouro. Uma experiência radical.                           

domingo, 5 de maio de 2013

Nos tempos de nossas brilhantinas

Aumenta o som DJ. Não acelera o PIT. A batida é louca. O coração acelera.

Era sempre uma febre esperar até o sábado ou domingo para acompanhar as novidades das pistas de dança. Meu mundo, o planeta Cohab, me encaminhou nas sendas das festas regadas ao funk melody, também na época chamado de ritmo Miami, cuja versão e tradução no Brasil eram expressas pelo Furação 2000. 

Conheci as luzes de uma boite pela já extinta Hollyday, que funcionava às expensas do Centro Social Urbano, C.S.U. Na época, uma criança pré-adolescente tomando gosto por um estilo de vida que pincelava as despedidas da ingenuidade púbere.

Pochete na cintura, bermuda de surfista, corpo esguio e esquálido e uma vontade danada de ser gente grande. Éramos a geração intermediária. Havia os mais velhos, o meu irmão Homell dentre eles, e os mais pirralhos que nós, esses não iam para a Hollyday.  

Não sei por que a Hollyday fechou, só sei que logo logo a SACOTECA (Clubão da Cohab), de dia sacolão, de noite discoteca, passou a ser a bola da vez. Mas aí não iam apenas os conhecidos, gente da minha rua e vizinhança, como de vários lugares da cidade. Era para mim um ambiente hostil. Tribos de vários tipos, roupas e estilos. Era a época do Break Dance. Aí... também quis ser breakista. E fui. Não apenas, como também pichador, minha alcunha era ADERBAL, escrevendo o primeiro A como o do anarquismo. Eu nem sabia o que era anarquismo. 

A espera do próximo domingo era estarrecedora. Que próxima música nos seria apresentada? 

Depois surgiu a rivalidade com a Associação dos Moradores do Cohatrac para ver quem lotava mais a casa, qual era o melhor DJ, onde tinha mais gente bonita, essas coisas pueris....

A música era quase sempre a mesma, o funk melody, na época uma novidade. Já havia quem a criticasse acusando-a de não-música e extrema dependência da parafernália que anos mais tarde eu saberia que se chamava de pick-up. 

O funk, ainda que melody, era uma sinalização da aceleração da vida, sentida de forma mais lenta numa cidade cujo ritmo de vida era compatível com seu desenvolvimento econômico. É claro que em outras cidades já não era novidade, como no Rio de Janeiro, por exemplo, mas para São Luís e para a Cohab eram. Eu explico.

Em outros bairros mais aquinhoados, de boates mais sofisticadas, como a Gênesis, no Calhau, a percepção sobre as coisas e o mundo se faziam de forma mais rápida pela circulação das pessoas por outras cidades e países, logo, a forma de incorporação a estilos e formas de consumo se dava diferentemente dos que moravam na periferia da cidade, meu caso. Incrível !!! Na década de 80, a Cohab era periferia.  

Aqueles momentos representavam uma mudança, hoje eu sei, de um tempo mais lento, de uma atmosfera mais bucólica para uma fase mais enérgica, “promissora”, de um mundo que se descortinava para aquela geração. Era o fim da ditadura militar depois de 21 anos de repressão. Era a percepção de que aquela geração podia tudo, por isso, sentir-se aquinhoado com as novidades musicais era uma forma de estar conectado com o mundo. 

Muitos chamavam aquelas músicas de lixo musical, de enlatadas, pasteurizadas, de colonialismo, mas a verdade é que quanto tocava Xavonne (So telme telme), Stevie (Spring love X mix), Intonation (Free me lovy), Bardeux (Bleeding Heart), dentre tantas outras, as questões ideológicas ficavam de lado e todos da pista queriam ao seu modo dançar o melhor passe, acompanhar o ritmo, suar a camisa e desafiar um outro breakista a fazer melhor em meio ao cheiro de tomate, cebola, pimentão. 

Depois, era voltar andando para casa com a turba delirante pela noite de gala a la John Travolta, narrando os feitos, exagerando um pouco, contando vantagens e esperar até o próximo domingo.     

                

           














sexta-feira, 3 de maio de 2013

Dos mijões de São Luis

No bom português brasileiro – se bem que para alguns linguistas já não é mais português brasileiro, e sim, brasileiro apenas, ou seja, uma nova língua –, mijar é a mesma coisa que urinar, fazer xixi, pipi, verter água. 

No caso especial do Brasil, grosso modo, urinar não é uma característica do espaço privado, e sim, público, na rua mesmo, em qualquer lugar que der. Se tiver apertado, é só desarrochar o buriti, abrir as calças, calção, enfim, botar o pênis para fora e sem pudor fazer ali mesmo, na frente de todo mundo, sem vergonha.

Em São Luís do Maranhão, cidade sem banheiros públicos, pouco esgotamento sanitário, espaço onde há ainda muita área verde, mas que a especulação imobiliária já está tratando de desmatar, é muito comum ver muito marmanjo e até mulheres fazendo xixi, mijando, urinando em pleno espaço público. Já é tão corriqueiro que as pessoas nem ligam mais. É a máxima expressão da naturalização proposta por Foucault acerca do sexo, segundo ele, quando as pessoas naturalizarem o sexo, deixará de ser um tabu. Pois bem, Foucault, se estivesses vivo, verias que tua reflexão teórica teria total comprovação na cidade de São Luís. Já virou parte da paisagem urbana. O elemento novo são as chuvas torrenciais nessa época do ano, é chuva misturada com mijo descendo vala abaixo.

Além de ser uma característica cultural, e, exatamente por ser uma questão cultural, mijar nas ruas de São Luís é uma herança do período colonial, quando os tigres (escravos) a mando de seus senhores jogavam as fezes nas praias e espaços urbanos da cidade.

Não havia e ainda não há uma clara distinção entre o que é publico e privado, por isso as pessoas não se sentem constrangidas em fazer no espaço público o que fazem em casa. E aqui não se trata de uma crítica a quem faz xixi nas ruas, se fazem é porque não há espaço público para isso, vez que necessidades fisiológicas todo mundo tem e ninguém pode prever quando dá aquela vontade arretada de mijar ou fazer um 2, defecar, no bom brasileiro, língua me refiro. Número 1 é urinar. Esse código de 1 ou 2 uso com minhas filhas. 

Essa questão de indistinção entre o que é publico e o que privado está na ascese da formação do estado brasileiro. O estado brasileiro nasceu como qualquer outro para beneficiar os setores de dominação, privilegiar grupos de classe, por isso a população nunca se sentiu identificada ou representada pela estância política. Essa não dissociação entre o que é público e privado se transmutou para a convivência urbana, na verdade, o espaço urbano era a representação da relação privada com o espaço publico.

Por isso que é muito comum em São Luís vizinhos colocarem música alta, pessoas circularem com seus carros nas praias, levantarem os portas-malas com suas parafernálias tecnológicas e colocarem o som a toda altura. Se você se meter a besta de reclamar vai tomar um sonoro: – “Os incomodados que se retirem”... Ou seja, por ser público, eu faço o que eu quiser, quando deveria ser ao contrário, por ser público, não se pode fazer o que se quer, e sim, o que a coletividade deliberar, afinal, o espaço é público e não privado.

Apesar disso, quer dizer, de mijo para todo o lado, a cidade de São Luís não fede a mijo, depende do local. Existe um teste de uso de banheiro público que consiste em saber quanto tempo alguém consegue usar tal local segurando a respiração. Se der para segurar sem morrer asfixiado, então tá liberado.  

Considero o ato de urinar em público um ato de contravenção, não de falta de educação. Numa cidade provinciana, dominada por sucessivas oligarquias desde 1845, sem parques, sem praças decentes, cheia de buracos, suja, imunda, sem banheiros públicos, engarrafada, com feiras imundas, baixo esgotamento sanitário, mijar nas ruas é apenas mais um dos componentes de uma cidade cuja população nunca se sentiu prestigiada, respeitada ou mesmo vislumbrada por políticas públicas construtora de espaços públicos. 

Atentado ao pudor? – Mas como, seu guarda, vou fazer minhas necessidade onde, se estou apertado?!!! Pode dizer perfeitamente qualquer morador que numa situação de perigo, descer do ônibus, parar o carro, procurar um lugar mais escondidinho e sentir-se aliviado. Ufa!!!! Pensei que fosse mijar nas calças!!!!!

Portanto, se virem alguém mijando, urinando, fazendo xixi, número 1 por aí, não vão pensando que isso é um atentado ao pudor, é tão somente um componente da paisagem urbana desta cidade que em pleno século XXI ainda está em alguns aspectos em pleno século XIX         










quinta-feira, 2 de maio de 2013

Dos perigos da sociedade altamente hedonista

Quando da passagem do fim do império romano e o início da construção da cristandade ocidental, três escolas de pensamento foram instituintes para a noção de felicidade: o hedonismo, o epicurismo e o estoicismo. A primeira sustentava que a felicidade era uma extensão do prazer absoluto; o epicurismo, a busca do prazer moderado com vista ao equilíbrio; o estoicismo sustentava que o homem deveria suportar as auguras da vida, ter contrição, restrição como forma de aquisição do conhecimento.

Concepções advogadas desde os pré-socráticos, tais escolas tiveram um papel importante no balanço da construção da medievalidade cristã. Calcada sobretudo no estoicismo, o cristianismo ocidental levou ao extremo a noção de resignação. A partir do princípio de que os homens eram indignos do projeto salvífico de Cristo, vide que graça é algo que se recebe sem merecimento, logo, todo esforço com vista ao galardão celestial era inglório, grosso modo, o homem medieval era temeroso, atormentado pela culpa, pelo medo do inferno.

A modernidade enquanto projeto civilizacional é o momento de desencantamento do mundo, do fim da magia, ou seja, da passagem do homem como criatura para a condição de criador, repetidor dos elementos da natureza, é também um instante de redescoberta dos prazeres da vida, da prática da nova vaidade, dos contratantes de pintores para autorretratos, cultores da boa mesa, dos bons livros e costumes. Era o processo de redefinição do cristianismo e das derivações disso: trabalho, economia, lazer e, claro, religião.

Depois vieram a exacerbação do luxo da aristocracia europeia, das feituras cortesãs, dos escândalos de extravagância com o erário ao passo que a população francesa minguava a pão e brioche. Tais escândalos contribuíram para a eclosão da Revolução Francesa quando os pobres descobriram que os ricos festavam a vinho, música e sexo, enquanto estes passavam fome.

Logo depois, a partir da era vitoriana, inicia-se a belle époque e o desfrute da vida moderna, o encantamento com o novo, com o que provocava espasmo, o que levou por exemplo Baudelaire a se transformar num voyeur, num observador astuto, privilegiado dos novos sentimentos que a vida passava a portar. Era um momento de supressão do passado, de euforia quanto ao futuro, da certeza de que o progresso traria a felicidade tão desejada e esperada pelos homens, menos para as críticas e desconfianças de Karl Marx e posteriormente de Nietzsche.

O século XX, que Hobsbawn denominou de o século breve, a era dos extremos, foi até então o mais radical dos tempos no que se refere à capacidade humana de vivenciar experiências novas, de ultrapassar seus próprios limites e a se experimentar de tudo. Não havia limites para a experienciação humana, não havia mais nada que os homens e mulheres pudessem inventar para sanar a necessidade de sentimento de prazer e de descobertas.

No entanto, isso trouxe sérias e graves consequências. A sociedade da experienciação se transformou na sociedade da deceção, ou seja, naquela cuja descoberta de seus desejos e potencialidades tornaram homens e mulheres reféns da busca pelo prazer e felicidade a todo custo, com uma grande incapacidade de lidar com suas frustrações.

A questão é que o capital propugnou e condicionou aos homens e mulheres o consumo como remédio e mediação da felicidade, logo, tudo se transformou em mercadoria, logo, quando a mercadoria não satisfaz à saciedade humana emerge a deceção, a frustração.

A sociedade contemporânea consumista possui uma imensa incapacidade de enfrentar seus medos, angústias, desafios e temeridades. Recorre a todo e qualquer custo a aparatos, placebos, ferramentas que lhe propicie a fuga das dificuldades da realidade. É uma sociedade altamente doentia, narcisista, individualista, hedonista no sentido de que o prazer sob qualquer circunstância justifica os fins para supressão de suas incapacidades.

É uma sociedade imediatista, impaciente, acelerada, descartante de tudo que julga descartável, inclusive pessoas. Não se trata de condenar o hedonismo, mas de se questionar qual o problema em se enfrentar problemas, sobretudo quando estes nos dizem respeito.

Os limites do capital enquanto variante promotora da felicidade dão mostras desde meados do século XX que não supriram nossas carências, ao contrário, aumentaram a lógica da competitividade, da agressividade e, consequentemente, das frustrações, vide que ela é a promotora da pletora noção de vida feliz, como se a felicidade pudesse ser comprada numa gôndola de supermercado.

A questão não é o hedonismo em si, prazer é uma condição axial humana, e sim, quando o hedonismo é encapsulado pelo capital como instrumento mercadológico e instrumento da felicidade, outrora coletiva, hoje, cada vez mais individualizada. A individuação é uma marca não da construção da subjetividade, do sujeito, mas do indivíduo como categoria jurídica, política, financeira.

O problema se torna ainda mais agudo quando o pusilânime conceito de cidadania entra em cena. O que é ser cidadão? Ser consumista das lógicas e das ofertas políticas do jogo democrático. Há a democratização das possibilidades, mas há também paralelamente a privatização dos meios, por isso as frustrações, depressões e angústias.

Felicidade é uma condição subjetiva, no entanto, os indicadores de violência, de depressão, de suicídios, de atentados de toda ordem, de banalização da vida, dão sinais que o projeto hedonista consumista verteu água.

Quando vamos acordar dessa letargia?

Entrevista com Arton, de Sirius. Parte II

  Entrevista realizada no dia 14 de fevereiro de 2024, às 20:00, com duração de 1': 32'', gravada em um aparelho Motorola one zo...