Todos os dias William Autumn
fazia o trajeto a pé de sua casa até a Universidade de Vancouver. Para o professor de Filosofia
da Linguagem, caminhar
era uma forma de manter a conexão consigo mesmo, ainda que com os barulhos dos
carros. Espelhara-se em Sêneca sobre o princípio de pensar com os pés. Arguto
observador comparava as tonalidades das árvores durante as estações, mesmo no inverno, cujos termômetros acinzentavam as folhas, mas branqueavam o
chão de neve.
Certa vez, sua caminhada foi
acompanhada de preocupação, a respiração ficou mais ofegante, a observação da
paisagem perdeu o espaço para a alta explosão de seus neurônios em virtude da
preparação para a conferência de abertura do Seminário sobre Filosofia e
existência.
Pensara em seguir talvez
os mesmos argumentos de Kierkegaard, Heidegger ou talvez Sartre, mas dizer o quê sobre a
existência calçando as mesmas sandálias, os mesmos percursos de seus
antecessores? O desafio era acrescentar, talvez contrapor, interpelar ou
anunciar algo não pronunciado.
Deu-se conta que o ponto
de partida deveria ser novamente a linguagem, sempre ela, a pletora edificadora
de como enxergamos o mundo, a bem da verdade, constrói os randômicos
princípios, teorias, hipóteses sentidos de interpretação e, depois de
corroborados, alicerçados, apoiados e reverberados, deixam de ser aleatórios
argumentos para serem teses, até serem novamente contestados.
De tanto pensar, afinal,
a conferência se
aproximara, sonhou sobre o tema. Teve um sonho tão inusitado a ponto de sentir que era real, via-se nele,
interagindo, sentido como se estivesse acordado. No sonho, estabelecia um diálogo com alguém desconhecido,
nunca antes visto, mas estranhamente “próximo”, como se no fundo não fosse tão
desconhecido assim. O tal desconhecido prometera esclarecer um dos sentidos da
existência, exatamente, um dos, afinal, cada pessoa constrói os símbolos de sua
vivência, ainda que exista algo que unifique todas as outras: a imaginação
sobre a vida.
Em tal imaginação coletiva, ainda que particularizada, todas as pessoas
partem do mesmo princípio: o de que a vida é estabelecida a partir da percepção
dos cinco sentidos. Era como se os cinco sentidos fossem a própria
materialização da vida, logo, qualquer construção simbólica ou interpretativa
inexoravelmente se origina nela. Sendo assim, pergunta William no sonho, isso cria
um axioma indagando acerca daquilo que os sentidos não captam, porém existem. Por exemplo – indaga ele – sabemos que certos animais veem
cores, ouvem frequências sonoras que os humanos não captam, então, o que seria
realidade para eles não é a mesma nossa, afora o problema da linguagem, não
conseguimos decifrar ou estabelecer grande comunicabilidade com os animais!! Seu interlocutor não retruca e
permite que ele desenvolva o raciocínio chegando às suas próprias conclusões.
Então ele começa a mergulhar num campo de percepção sensorial deixando
de lado todo o seu arcabouço conceitual, intelectual, perscrutando outras zonas
de sensibilidade, como a tátil, a sentimental, numa fusão
entre mente e coração. Deu-se conta de que a mente fora usada todo esse tempo como a única ferramenta
de compreensão da vida, como se os demais órgãos, capacidades, não interagissem
entre si, faltando inter-relação, controlados pela mente e seus jogos
simbólicos de decodificação do mundo de tal forma tão irretorquível, tão
inquestionável que passou a ser em si mesma o sentido da existência.
Quem teria começado o jogo da separação entre os demais órgãos e a mente
e da mente com outras possibilidades existenciais? A chamada realidade exigiu
uma interpretação da mente que, usando de uma linguagem racionalizada, passou a
ser a intérprete da vida, ou a mente se colocou como única possibilidade
interpretativa porque assim, calcada na separação, conseguia se notabilizar
enquanto diferente? Isso abria uma série de leques e dúvidas, tais como: como a
mente, outrora integrada a outros órgãos, “optou” pela separação
para se sentir superiora? Quais
as consequências da separação? Se a mente, fruto da separação, era limitada,
então, todos os códigos interpretativos da vida, por conseguinte, são
duvidáveis, ilusões? Se assim o é, então, os nossos sentidos sobre a vida estão
alicerçados em falsas premissas? Qual foi o papel da linguagem nesse processo
de interpretação, separação de outros órgãos e simbolização da existência?
Ele acordou sobressaltado. Claro, somente num sonho, longe do controle
do consciente, tais questões ganhariam tal monta a ponto de não saber o que era
ficção e realidade. Logo no sonho onde os códigos interpretativos ganham
leveza, as certezas se diluem pela diluição da racionalidade. Correu para o bloco
de anotações e começou a esboçar o roteiro da conferência.
À medida que fazia suas caminhadas lançava mão do bloco e
acrescia tópicos para reflexão. Começou a ter sudorese pela falta de
encadeamento, não havia ainda uma estrutura formal e sabia que a plateia o
aguardaria ansiosamente. À proporção que anotava percebia conexões da linguagem
com ela própria, ou seja, dependendo do argumento que utilizava abriam-se novos
leques de interpretações, todas corretas porque não há erros, e sim, conexões
que o pensamento a partir da linguagem, ou a linguagem leva pensamentos
para novas miríades a tal ponto que a mente se enevoa nela mesma, nas suas
próprias conexões e sinapses. É uma espécie de labirinto sem fim, abrindo
portas, mais portas e mais portas. O problema para ele continuava sendo a
separação com outros órgãos. Os demais também pensavam da mesma forma? Se
pensavam, como estabelecer uma conexão com a mente que só entende sua própria
linguagem?
Chegou o grande dia. Auditório lotado. É anunciado ao microfone seguido
de um estrondoso bater de palmas. Caminha lentamente até o palco. Usava um blazer
azul claro, camisa azul turquesa, calça de linho cinza, cinto marrom e sapatos pretos.
Ao subir toca levemente no microfone testando-o. Coloca seus óculos, dá uma
profunda expiração, olha para a plateia e retira um bloco de anotações do bolso
da camisa. Passa a vista nas suas anotações e sobrevém-lhe na mente brancas
nuvens, as palavras embaralham-se na sua frente, fazem um redemoinho, vê
literalmente um formato de nebulosa. Silêncio na plateia. Um ligeiro suspense.
Pede então a todos que fechassem os olhos e sentissem o que para eles era a
existência. Sentir, não pensar, frisou. Neste instante, uma borboleta azul
magicamente pousa sobre seus ombros. Ao sentir o voar da borboleta abre os
olhos e a vê pousada no seu ombro esquerdo. Estica o braço puxando a manga do blazer
para ver as horas: o marcador digital apontava 11:11h am. O silêncio estendeu-se.
Aos poucos as pessoas isoladamente começam a abrir os olhos. Começou o
burburinho. Quando todos perceberam o palco estava vazio, William Autumn não
estava mais lá. Sobre o púlpito apenas os alfarrábios sobre o sentido da
existência com anotações sem conclusões.