terça-feira, 24 de março de 2015

A corrida

Perfilado estava Nabuco entre os concorrentes. Observava a massa entrópica das coxas dos seus adversários comparando com as suas para saber de suas reais possibilidades de ao menos chegar ao fim. O número em suas costas não dizia muita coisa sobre sua condição, em todos os sentidos. Era apenas um número, como ele o era entre os corredores.

Não sabia ao certo porque estava ali, no fundo lhe reservava alguma desconfiança. A corrida era simbólica, contra os outros e consigo, consigo e contra os outros, contra si e por todos.

Deram o sinal. A disparada abriu a porteira de um tropel alucinado em busca da superação e glória. Nos instantes em que a adrenalina atinge o seu ápice as hemácias espargem os tecidos musculosos, nada separa a força dos corredores de suas condições animalescas, sendo eles mesmos como coelhos fugindo de sua presa.

Nabuco é um coelho assustado e temeroso. Pelos seus lados vê os corredores o ultrapassarem numa fremência rítmica como soldados marchando em dia de guerra. O som das pisadas mais lembra a orquestra do som das caixas da banda marcial que ouvia aos domingos no coreto da pracinha no centro da sua cidade, a mesma que deixara para trás da mesma forma que estava agora, correndo, sem olhar para trás.

Olhar para trás era como reconhecer a sua incapacidade de acompanhar outros corredores vendo-os passarem por ele, temendo desistir da investida e voltar ao ponto de partida. Nunca!!! À frente um horizonte de novas possibilidades, desafios e a surpresa de não saber onde chegar.

À medida que as pernas pesavam comparava com cada etapa de sua vida. Cada passada, uma lembrança, mais um trecho percorrido. Quanto mais corria e se dava conta de que não havia desistido, mais se empolgava na esperança de concluir tal desafio. As dores se tornavam menores em comparação ao gozo da chegada.

De tanto pensar em não desistir e apenas concluir sem se importar com a sua posição ia ultrapassando os outros corredores percebendo-os fatigados pela demasia necessidade de vencer. Nabuco não, queria tão e simplesmente chegar. Era como se o corpo obedecesse a voz da mente e duplicasse os esforços para superação da descarga de ácido lático nas filigranas de seus tecidos. O ácido lático se transmutava em dopamina, amenizando recalcitrantemente a consumação de oxigênio.

O segredo então estava na mente. Nabuco agora começa não apenas a visualizar a possibilidade de tão somente chegar, como de conquistar uma boa colocação. Aumenta as passadas, vê-se como vencedor.

A indicação da marcação no pórtico direito dos corredores sinalizava a metade da corrida. Inicia-se então a curva para a chegada. Nabuco estava entre os primeiros. Ainda ao longe avista os líderes e percebe a diminuição do ritmo deles. Acelera.

O entusiasmo da plateia lhe dá ânimo. As palmas funcionam como expectativa tal como um pintor ao finalizar um quadro espera a resposta de seu público, o que muitos chamam exatamente de morte da arte por deslocar a condição unívoca entre o artista e sua obra para a obra e sua recepção. Nabuco gosta da reação do público mas também se lembra que por conta de tal relação deixou muitas vezes de viver sua vida. Começa a se questionar se corre por ele ou se pela ansiedade e resposta a alguém. Quando essas questões começaram a atormentar sua cabeça, suas pernas começaram a pesar, sua visão ficou turva, começou a faltar oxigênio.

Como está na reta de chegada avista os corredores retardatários que ainda estão na reta de saída no lado oposto da pista. 

De repente, uma grande teia enlaça os corredores impedindo-os de continuarem a prova. Todos, sem exceção, um após o outro são enredados na grande teia dos retardatários. O painel eletrônico anuncia o seu número como líder da prova indicando a distância que faltava para a faixa de chegada.

Uma dúvida atroz, acompanhado das dores musculares, falta de ar e vontade de desistir lhe vem à cabeça: corro até a chegada e venço a prova ou ajudo os que estão presos?

A cada instante que passa aumenta sua angústia. Nabuco olha para trás e vê de uma distância razoável o segundo colocado. Sente vontade de perguntar ao diretor de prova se, caso ele parasse para ajudar os outros corredores se lhe seria dado uma bonificação, um desconto, e se a corrida poderia ser retomada com as mesmas vantagens que estavam postas naquele momento. Mas, não há tempo. Atravessa o arrabalde-do-meio-fio, passa por entre os expectadores, cruza a pista e vai em direção aos que estão presos. Antes mesmo de tentar cortar a teia com as mãos, seu pescoço já está enlaçado e ele preso, sem poder se movimentar. Respira fundo, tenta manter a calma e se dá conta de que, pacientemente, fazendo movimentos oblíquos com a cabeça, enfiando as mãos no espaço entre um fio da teia e o pescoço conseguirá se desvencilhar. Tenta avisar outros corredores que façam o mesmo, mas o desespero, seguido da vontade de correr e vencer a corrida os impedem de se soltarem.

Então, por que só ele consegue se soltar? Dá-se conta do porquê de tudo isso, porque começou a correr, o que estava fazendo ali, qual era então o objetivo de tudo. Um a um retira a teia dos concorrentes até que o último se livre e volte a correr.

Retorna para a reta de chegada, para o mesmo ponto de onde havia parado, mas percebe que uma dezena de corredores havia ultrapassado como na música La Corrida, de Francis Cabrel:

J'en ai poursuivi des fantômes
Presque touché leurs ballerines
Ils ont frappé fort dans mon cou
Pour que je m'incline
Ils sortent d'où ces acrobates
Avec leurs costumes de papier?
J'ai jamais appris à me battre
Contre des poupées
Sentir le sable sous ma tête
C'est fou comme ça peut faire du bien[1]

Cruza a linha de chegada no bloco intermediário, sem holofotes, sem menção honrosa, sem prêmios, sem louros.

Caminha lentamente com as mãos na cintura, ofegante, buscando ar e explicação sobre tudo aquilo. Até mesmo aqueles a quem Nabuco ajudou a se desvencilharem da teia passam por ele sem o cumprimentá-lo e agradecê-lo.  
Torna-se mais um na multidão agora dispersa depois da chegada. Ele sorri. Enfim, venceu uma corrida.
           
       
[1] Já corri atrás de fantasmas
Quase abati suas bailarinas
Eles me golpearam com foça em meu pescoço
Pra que eu me curvasse
De onde foi que esses acrobatas apareceram
Usando fantasias de papel?
Nunca aprendi a brigar
Com bonecos
Sentir o chão sob minha cabeça
Me faz um bem tremendo



segunda-feira, 16 de março de 2015

A falência do modelo democrático representativo brasileiro e as contradições das manifestações do dia 15 de março.



Ontem, dia 15 de março, milhares de brasileiros foram às ruas protestar contra o governo Dilma. Curioso é que nas jornadas de junho e julho de 2013, quando um número infinitamente superior fez este mesmo movimento, a cobertura da mídia foi outro, tanto quanto o enfoque e a classificação.

As jornadas de junho e julho enfatizaram a falência do modelo democrático brasileiro levantando a bandeira de que nenhum partido representava o movimento. Como as manifestações também atacavam o sistema capitalista e permitiram a ascensão dos black blocks, cujas ações miravam o simbolismo do capital, representado em monumentos e empresas privadas, a grande mídia tratou de classificar o movimento de terrorista, e os participantes de baderneiros, bandidos.

As manifestações de ontem, guardadas as insatisfações com o atual governo, a revolta contra a corrupção, absurdamente legítimas, são em certa escala muito nocivas. Os Black Blocks  atacaram o simbolismo do capital, quer estrangeiro, quer nacional, enquanto que setores das manifestações do dia 15 de março evocaram o retorno das forças armadas, levantaram bandeiras fascistas, contaram com presenças de políticos envolvidos em escândalos de corrupção, de frações de classe que enriqueceram ou que mais enriqueceram, curiosamente, nos governos petistas Lula e Dilma, pediram o fim da política pedagógica de Paulo Freire, a prisão de Karl Marx, o fim da aproximação com a Venezuela e Cuba, além da legitima bandeira da reforma política, dentre outras coisas.

Os manifestantes em sua grande maioria optaram por vestir a camisa da seleção brasileira, entidade ligada à CBF, envolvida em escândalos de corrupção. Optaram por um símbolo cultural usado como estratagema de manipulação social, sobretudo em tempos da ditadura, e que hoje abandonou suas matrizes pobres enquanto alavanca de ascensão social. O futebol é hoje uma grande operação empresarial controlado por setores muito bem estruturados.

Há um aspecto semelhante entre as manifestações de junho e julho e as de ontem, dia 15 de março de 2015: a ausência de uma clareza sobre o modelo representativo brasileiro, que Renato Janine Ribeiro classificou como o fim da Nova República, iniciada com a redemocratização do país em 1984. As jornadas de junho e julho de 2013 apontavam a falência de tal modelo, mas a ausência de uma pauta unificada e o direcionamento das manifestações permitiu que as ações dos Black Blocks ganhassem muito mais evidência. As manifestações de ontem, dia 15 de março, sinalizam a falência do modelo de governabilidade perpetuado pelo PT, mas erra em quase tudo, sobretudo em centrar neste partido a origem da corrupção, olvidando a estrutura política brasileira, responsável, inclusive, por permitir que um partido de esquerda ao chegar ao poder perpetue um esquema de corrupção ampliado em patamares inimagináveis.

Há outras coisas extremamente preocupantes nas manifestações de ontem, dentre elas, o grande esquema da elite política deste país que orquestra descaradamente um golpe para destituir a presidente Dilma exatamente para esconder sua participação em esquemas de corrupção, como o caso Swissleaks-HSBC, do Metro de São Paulo, Furnas de Minas Gerais, e até mesmo da Petrobras, já que a estrutura de desvio de verbas começou no governo Fernando Henrique Cardoso. Ainda assim, a esquerda, e sobretudo o PT, foram arrogantes e/ou ignorantes ao desconsiderarem a força da classe média e da elite brasileira, volto a dizer, curiosamente um dos segmentos que mais enriqueceram nos governos Lula e Dilma.

Então, se estes segmentos foram os que mais enriqueceram, por que orquestraram as manifestações de ontem? Antes de mais nada, e que não pode ser desconsiderado ou desprezado, coisa que o PT fez, pelo acinte vergonhoso da estrutura corrupta assentada no mensalão e na Petrobras, o maior até hoje da história de um país democrático, o que permitiu a ascensão de setores de classe que, mesmo enriquecendo com os governos Lula e Dilma, não podem consentir. Segundo, exatamente por um paradoxo: a diminuição do ritmo de crescimento das classes alta e médias, ou seja, com a crise econômica internacional e a recessão brasileira, corroborado pelos aumentos nos combustíveis, inflação, aumento da tarifa de energia, subida do dólar, colocando em risco a economia do país, por conseguinte, os lucros adquiridos nos últimos anos. Terceiro, pela divisão do bolo econômico do país distribuído em segmentos dantes nunca privilegiados, como as classes mais pobres, irritando aqueles que historicamente sempre foram beneficiados pelo estado, como a classe média paulistana. Quarto, pela atitude nada inteligente da presidente Dilma de se afastar da base aliada, criando um núcleo duro do governo irritando inclusive setores do próprio partido dos trabalhadores. Essa atitude isolacionista de Dilma acendeu o sinal amarelo dos demais segmentos com o medo de uma “demiurgização” da presidente (com todos os riscos de se colocar esta palavra entre aspas, como qualquer outra, como bem disse Giorgio Agambem em A ideia da Prosa).

O que assistimos ontem foram duros episódios de uma elite raivosa, majoritariamente branca, nos termos propostos por Gaetano Mosca e Vilfredo Pareto. Estes no início do XX apregoaram que somente este segmento social, a elite, seria capaz de conduzir os destinos da Itália, atribuindo uma responsabilidade e uma áurea de capacidade a tal segmento, exatamente o oposto do que pensou Gramsci ao denunciar como se configura a formação de uma ou de qualquer elite. A elite brasileira mirou na presidente Dilma e no PT desviando o olhar da massa ensandecida sobre a configuração política brasileira, qual faz parte, construiu o sistema e agora se ressente de politicamente estar alijada.

A ação da elite brasileira ontem não difere em nada de outras elites. Na Itália, mais precisamente no Norte, parte mais rica do país, sede da Liga Lombarda (movimento fascista), prega abertamente a separação do sul daquele país, a expulsão dos estrangeiros e evoca um princípio de vida supostamente típica daquela região, além de ser a base eleitoral de Silvio Berlusconi.

Na Argentina, Buenos Aires sempre desprezou o resto do país, considerando-se os portenhos os europeus da região, olhando com desdém a formação étnica predominante indígena de outras regiões argentinas.  
    
Na Venezuela, um dos motivos do ódio da elite foi o fato de Hugo Chaves ter usado a imensa riqueza do petróleo para a consecução de programas sociais.

Na Espanha, Madri, capital, também é acusada de ser indiferente às diversidades culturais e econômicas de outras regiões, contribuindo para o movimento separatista basco e catalão. Igualmente em Paris, umbigo, literalmente, “Ilê de France”.

No Brasil, o nosso umbigo é a classe média paulistana. Tal classe, internacionalmente conhecida por sua prepotência, foi beneficiada desde fins do século XIX pela política do café com leite, levando outras regiões do Brasil a se insuflarem no golpe de 30 do século XX, impetrado pelo gaúcho Getúlio Vargas, acarretando na reação paulista em 1932.

A disputa entre a classe média paulistana e a carioca teve como episódio, por exemplo, a eclosão do Movimento Modernista em 1922, contra a concentração emanada da capital do país, cujo símbolo cultural era a Academia Brasileira de Letras. Ou seja, São Paulo era já a cidade mais rica do país, mas o cenário cultural era coordenado pelo Rio de Janeiro. O movimento modernista de 1922, é, dentre outras coisas, uma reação à capital federal.

Não à-toa, a manifestação de ontem teve maior foco exatamente em São Paulo. Reduto do PSDB, que aliás, governa o estado há 20 anos, vê a polarização PT X PSDB ter como fulcro espectral a disputa entre os governos federal e estadual. Tal disputa remonta a meados do século XIX. Quando o governo central é de São Paulo, as coisas vão bem, quando não....

Por outro lado, não se deve desprezar a força da rejeição à Dilma. Não adianta tapar o sol com a peneira e desqualificar o movimento de ontem, desqualifica-se o aspecto fascista, autoritário, preconceituoso de evocar o movimento integralista, de pedir a intervenção das forças armadas, e de, mentirosamente falar abertamente em fome e aumento da pobreza (os dados estatísticos provam exatamente o contrário). Afora essas e outras questões, a manifestação mostrou ao PT que sua forma de fazer política é atrasada, arcaica, pautada num modelo representativo falido, cujas bandeiras partidárias são incapazes de entender a dinâmica social, como se de fato os jogos do político, ou seja, os bastidores, os meandros do poder, não tivessem correlação alguma com as questões sociais, ao não ser com a própria lógica de perpetuação e reprodução do lócus partidário.

O PT poderia ter ouvido os clamores das ruas em junho e julho de 2013 e proposto uma verdadeira reforma política, não apenas reduzindo o número de partidos, mas propondo uma forma de organização social baseada numa experiência nascida nas jornadas: as assembleias populares. Tal experiência consistia em dialogar com as instituições democráticas as pautas do dia-a-dia, fazendo com que os representantes do legislativo saíssem dos seus gabinetes e entendessem as vozes das ruas. Assembleísmo? Burocrático demais? Pode ser, mas esse modelo em que as pessoas votam e se esquecem dos seus representantes durante 04 anos não serve mais.

Ao contrário disso, as manifestações de ontem demonizaram o PT e a Dilma como se fossem os únicos responsáveis e não colocaram o dedo na ferida: o nosso falido modelo democrático representativo. Além do mais, as jornadas de junho e julho de 2013, honestas, foram também legitimas, apesar da confusão na sua reta final exatamente por falta de pauta, de lideranças e por ter impedido a presença de partidos políticos. As manifestações de ontem foram legitimas, mas extremamente desonestas. Primeiro por mentir nos números sociais, como se o PT tivesse acabado com o país (faltou checar os dados do IBGE). Segundo por omitir a presença e organização partidárias, como o PSDB. O fato de não ter sido visto nenhuma bandeira de tal partido não quer dizer que não estavam por detrás de tais atos. Terceiro por ter permitido um sentimento e ideais fascistas no seio das manifestações, como a evocação deliberada e autoritária das forças armadas e a evocação de um nacionalismo sem partido político. E por último e mais grave de todos: pela manobra, manipulação grosseira e escancarada da Rede Globo.

Esta emissora, motivo de piada na Europa, sempre esteve ao lado dos poderosos. Nasceu sob os auspícios da ditadura militar, apoiou tal regime até o fim, apoiou Collor de Mello, o segundo e primeiro governo FHC e sistematicamente ataca o governo Dilma. Esconde sob a bandeira da ética e batalha contra a corrupção que está em guerra com o governo Dilma por conta da intenção de regulamentação da mídia e, sobretudo, sua suposta participação no esquema Swissleaks-HSBC.

Esta emissora só conseguiu tal poder quando ainda no período ditatorial contou com a reprodução e reformulação do modelo de teledramaturgia mexicana, replicando várias vezes ao dia novelas (telenovelas) para um público brasileiro que batia a casa dos 40% de analfabetos, além da adoção de seu padrão de qualidade, imitando emissoras dos Estados Unidos. Com o apoio da ditadura, com o excesso de telenovelas, com um padrão de qualidade, atingiu um patamar de intocabilidade, inclusive se achando no direito de intervir nos destinos políticos do Brasil.  

Quanto à desonestidade da elite presente nas manifestações de ontem, há mais um dado nada desprezível: a tentativa do governo Dilma de taxar as grandes fortunas. Isso, sequer foi tocado. Para uma elite extremamente consumista é quase uma blasfêmia.

O simulacro das manifestações tanto de sexta-feira, dia 13 de março, pró-governo, quanto as de ontem, dia 15, se esconde no fato de que em nenhum dos dois casos a intenção de mudar verdadeiramente política estava em questão. Manipulação de dados, números quanto aos participantes, não acredito que o Brasil tenha saído fortalecido, muito pelo contrário, acredito que o cinismo, a disputa ideológica, estão acima de qualquer interesse, o que só revela a fragilidade democrática brasileira. 

Só existia democracia entre iguais na Grécia clássica, resguardadas as circunstâncias e a concepção de cidadania naquela sociedade. Só pode haver democracia contemporaneamente quando as desproporções sociais foram menores, não é o caso do Brasil, nos E.U.A sim, onde em teoria prevalece o multipartidarismo, na prática, bipartidarismo.

O Brasil repete o modelo bipartidário estadunidense. Nos E.U.A, republicano e democrata, ambos liberais. No Brasil, PT e PSDB, também liberais, embora o primeiro flexionado para as questões e camadas sociais com mais ênfase. Nenhum dos dois partidos resolvem o problema no Brasil, mesmo porque a solução passa pelos partidos, mas não nasce dentro deles. Partido quer dizer parte, segmento, logo, todo partido quer poder e usará as suas armas para conquistá-lo.  

Além do mais, o voto ainda é obrigatório no Brasil, completa idiossincrasia democrática, no fundo, perpetuação da política coronelista e forma de perpetuação dos partidos no poder. Voto obrigatório é alavanca de campanhas patrocinadas por empresas privadas, compra de votos, de toda sorte de anomalia da cognominada política democrática brasileira.

Discutir corrupção em um governo sem discutir a ascensão do homem ultramoderno ou contemporâneo sem caráter é o mesmo que pleitear redução da menoridade penal sem adentrar nos meandros da indústria da criminalidade brasileira que fabrica meliantes a toda hora. É quase um pleonasmo. A política muda quando a sociedade muda também. A corrupção é endógena na sociedade brasileira não porque a essência do brasileiro seja corrupta, e sim, porque o estado historicamente foi constituído para privilégios de poucos, sempre defendeu os interesses classistas e nunca permitiu a “impessoalidade” de quem ocupa suas estâncias burocráticas.

O homem é estabelecido por limites, aprende com exemplos, restrições e dificuldades, acima de tudo espelha-se em exemplos. Se os exemplos da Republica sempre foram anti res publos (coisa pública), como querer uma sociedade mais equânime e justa?         






domingo, 8 de março de 2015

A reação conservadora brasileira e a tentativa de privatização da Petrobras



Já se passaram 13 anos desde a primeira vitória das eleições presidenciais de Luís Inácio Lula da Silva. 13 é também um símbolo, o número da sigla partidária do Partido dos Trabalhadores, PT. Fundado em 1979, congregando setores de oposição à ditadura militar, reunindo metalúrgicos, professores universitários, intelectuais, setores da classe média, nasceu sendo comparado ao Solidarnosc (solidariedade), Sindicato e depois Partido Polonês liderado pelo metalúrgico Lech Walessa, presidente da Polônia entre 1990 e 1995. Na verdade, nunca houve qualquer correlação, a não ser o fato dos dois serem liderados por metalúrgicos. O solidarnosc nunca foi socialista, muito pelo contrário, era ligado à igreja católica, exatamente desvinculado do Partido Comunista Polonês.

Em apenas 10 anos de fundação o PT já disputava as eleições majoritárias à presidência da República contra o que de mais conservador existia na política brasileira: Fernando Collor de Melo, fruto da oligarquia alagoana, ligado ao setor açucareiro, às grandes multinacionais, apoiado pela Rede Globo, filiado a um recém partido criado, o PRN. O discurso de não pagamento da dívida externa, de reforma agrária, de proximidade com Cuba, dentre outras coisas, assustou a velha estrutura mandatária do país que se armou de todas as formas possíveis para evitar a vitória de Lula.

Lula acumularia mais duas derrotas, dessa vez para Fernando Henrique Cardoso, Sociólogo, Professor Universitário, ex-MDB, agora nas lides do PSDB, Partido da Social Democracia Brasileira, uma dissidência do PMDB com uma roupagem Neoliberal. O primeiro erro do PT foi não reconhecer os avanços do período FHC, como a estabilização econômica, controle fiscal, austeridade administrativa, além da criação de alguns programas sociais.

Já no poder em 2002, “Lulinha Paz e Amor” havia abandonado a postura anti-FMI, anti-não pagamento da dívida externa, andava sempre alinhado, com bons ternos, discurso manso e caiu nas graças dos setores que dantes consideravam-no inimigo. Repetiu a formula econômica do período FHC, refez seu discurso contra o plano Real, encampou Henrique Meirelles como Ministro da Economia e surfou na onda do crescimento econômico global. Resultado: o Brasil se tornaria a 5ª potência econômica do mundo, a dívida externa deixou de ser um problema, reduziria a taxa de juros para menos de 02 dígitos, recuperou a indústria naval, ferroviária, colocou o Brasil no pleno emprego, ampliou e unificou os benefícios sociais da época FCH, como o bolsa família e conseguiria números extraordinários do ponto de vista das políticas sociais: retirou 25 milhões de brasileiros da miséria, reduziu o déficit habitacional, criou 14 Universidades Federais ampliando para 07 milhões de alunos matriculados, triplicou o número de Institutos Federais, aumentou o acesso de negros nas Universidades, criou o sistema de cotas, estabeleceu uma nova ordem política diplomática com os países do eixo de pobreza do hemisfério sul, África e Ásia, trouxe a Copa do Mundo de futebol para o Brasil e as Olimpíadas, criou o programa Luz para Todos, aumentou o repasse de recursos para as prefeituras municipais, colocou um negro na presidência do STF, Joaquim Barbosa, dentre tantas outras coisas.

O mais curioso de tudo isso é que Lula fez isso na contramão do discurso global de estado mínimo, ou seja, quando o mundo embarcava na política do consenso de Washington, Lula, como já dito, navegando na onda do crescimento global, conseguiu a façanha de fazer crescer a economia do país surpreendentemente aumentado os investimentos públicos. Lula indiscutivelmente é um dos maiores chefes de estado do Brasil.

No entanto, na contramão dos avanços sociais, o PT, incluindo Lula, também representou uma grande decepção do ponto de vista da concepção dos jogos do político. Eleito não apenas para fazer crescer a economia do país, o PT carregava consigo a bandeira de uma política diferente, longe dos 500 anos de fisiologismo da direita; excludente, elitista, colonizada. O PT logo cedo entenderia os meandros do poder tendo que claudicar da forma de fazer política, perpetuando a barganha de condomínio (congregando partidos de toda ordem em nome da governabilidade), incluindo o que de mais atrasado existia no país, como as oligarquias nordestinas e políticos ligados a setores de dominação política e econômica. Reeditou velhos caciques que estavam morrendo como Sarney, Jarder Barbalho, Renan Calheiros, dentre outros. Ou seja, no exercício do poder o PT aprendia que não se muda uma cultura política apenas no comando do aparato burocrático do estado, e que poder é dialógico e microfísico, como bem disse Foucault. No exercício do poder o PT, com exceção do olhar para as questões sociais e o aumento da cobertura política para os mais pobres, não mudava em nada a forma de fazer política, muito pelo contrário, resignificava.

A primeira delas foi a perpetuação do esquema de corrupção em nome da governabilidade cognominado de Mensalão, inventado e instituído pelo PSDB durante os oito anos do governo FCH. O segundo foi o aparelhamento do estado com a ampliação do número de ministérios e desvios de recursos de empresas como a Petrobras em nome da sedimentação partidária e ocupação de todos os setores possíveis da sociedade. O terceiro foi a atitude dúbia de, ao mesmo tempo apoiar movimentos sociais e aparelhá-los, como o MST, os sindicatos. O quarto, foi instituir um discurso supostamente diferenciador entre o ante o depois do PT, como do período da privataria tucanata que onerou o patrimônio público em 2,5 bilhões de Reais entregando empresas brasileiras a preço de banana para as multinacionais, sendo o que PT também embarcou na onda de privatização, embora em escala menor, como os fundos de pensão. E, talvez, o pior dos pecados do PT e Lula: a não implementação das reformas sociais.

Lula teve a chance histórica nas mãos de colocar a cabo as grandes reformas: fiscal, tributária, política, do judiciário, agrária, educacional e não fez. Teve os surpreendentes 82% de aceitação e popularidade, além da maioria no congresso e ainda assim não enviou a este órgão tais propostas. Resultado: criticou tanto o período antecedente e fez muito pouco. Criou uma grande contradição.

Ainda assim, esses 13 anos de exercício do poder no PT trouxeram à tona as maiores sombras do conservadorismo brasileiro. A direita, historicamente mandatária no país, cansou de estar alijada dos centros das decisões de mando e, corroborado pela péssima gestão de Dilma, sucessora de Lula, cuja economia míngua e quase estagna, resolveu colocar o bloco na rua com todas as suas armas, armando uma clima golpista no pais, trazendo o acirramento ideológico entre pobres e ricos, vide os episódios das eleições entre Dilma e Aécio chamando os nortistas e nordestinos de burros e atrasados, ameaçando abandonar o pais e parar a produção.

Ameaçam inclusive com golpe militar, impeachment de Dilma e privatização da Petrobras, sob o foco de incompetência do estado brasileiro em gerir tal estatal. O que se assiste no país é simplesmente estarrecedor. A grande imprensa, que sempre participou dos destinos do pais, invertendo a pauta sob a regulamentação da mídia, acusando o governo de impetrar a censura, que de censura não tem nada, se recusa a admitir que se trata de concessão pública com deveres e cujo conteúdo deveria transmitir mais informação e educação e menos entretenimento, sua grande fonte de lucro, além de recusar a discussão sobre responsabilidade civil quando nos casos de conspiração, como ora se assiste acerca da Petrobras, retomarei mais à frente. 

Setores da sociedade abertamente falam na necessidade de golpe de estado, de que o PT acabou com o país, olvidando os 500 anos de dominação elitista e colonialista que levaram o Brasil a situação que se encontra, ou seja, 13 anos de PT superam 500 anos de exclusão.

A eleição de Jair Bolsonaro (PP-RJ) por seu turno revela a faceta mais fascista da sociedade brasileira. Eleito com mais de 400 mil votos no estado do Rio de Janeiro, apregoa o extermínio de bandidos, o fim dos direitos humanos, o retorno ao uso de armas, segrega um discurso preconceituoso em relação aos nordestinos, homo afetivos, e diz publicamente que não só estupra a deputada Maria do Rosário porque ela é feia, sem que a sociedade se choque com tais declarações. Ainda se lança candidato a presidência da Comissão de Direitos Humanos do Congresso Nacional, uma clara tentativa de desmoralização e esvaziamento desta comissão.

Por outro lado, o crescimento dos evangélicos no país é preocupante. Com um claro discurso antilaico, ou seja, de que muito pelo contrário, devem ocupar os espaços de poder e implementar um estado religioso, perseguem os outros segmentos religiosos não cristãos, até mesmo cristãos, como os católicos e espiritas, atacam as religiões de matriz africana, implementam projetos de ocupação de espaço públicos como praças, redução de lugares de manifestação artística e folclórica e consideram avanços sociais ligados à esquerda como demoníacos, numa alusão infantil e pobre acerca do comunismo, perseguem homo afetivos, gays, lésbicas, transexuais, bissexuais. O vídeo postado no you tube da igreja Universal com homens fardados de roupas do exército adentrando num templo em marcha militar, mãos postadas à frente e gritando: “queremos o altar” é uma alusão à necessidade de proselitismo para angariar mais membros, encarando a disputa religiosa como uma guerra, correlacionando religião e ordem social.

Pastores de algumas grandes igrejas evangélicas do país abertamente pediram votos para Aécio Neves (PSDB) afirmando que cristão verdadeiro não vota no PT. Não é necessário levantar a bandeira da ética sob o pretexto de não votarem no PT uma vez que o antigo PL, Partido Liberal, era grosso modo um reduto de deputados evangélicos envolvidos em escândalos de corrupção, como o mensalão. Ademais, as experiências de evangélicos no poder estão muito longe de serem éticas ou exemplos de seriedade e transparência.  

Toda a sociedade é dividida, em qualquer país do mundo os conflitos ideológicos são escancarados e abertos, acontece que no Brasil o discurso do homem cordial camuflou as diferenças de posicionamentos, hoje, abertamente colocados na cena pública com requintes de preparação de uma guerra civil. O clube Militar chamou Lula de agitador social, a imprensa descaradamente faz uma campanha pelo impeachment de Dilma e uma onda combativa de desmoralização da Petrobras segue em curso.

Erros de gestão e corrupção à parte, que aliás, precisam ser investigados, a grande imprensa brasileira não revela e não menciona o interesse de grandes empreiteiras estadunidenses na quebradeira das empreiteiras brasileiras e de empresas petrolíferas estadunidenses no pré-sal, explorado pela estatal brasileira. A desvalorização sistemática das ações da Petrobras na bolsa de valores, ação na justiça estadunidense contra a Petrobras escondem o interesse internacional nas reservas de petróleo. O suposto impeachment de Dilma abriria espaço para a discussão sobre a privatização da Petrobras e por conseguinte, de sua venda.

Como bem frisou Luciano Martins em O cenário do escândalo da Petrobras, observatório da impressa, 05 de fevereiro de 2015, edição 836: “as grandes multinacionais do setor petrolífero ficaram de fora do principal manancial de óleo do mundo que não está sendo operado em região sob conflito. A imprensa brasileira aplaudiu o fim do monopólio da Petrobrás, em 1997, e condenou o modelo do pré-sal em 2009”. 

A falta de transparência nas informações por parte da grande imprensa brasileira esconde os interesses capitalistas no fracasso do governo Dilma, que por sua truculência, falta de articulação com a base governista e oposicionista, falta de diálogo, inclusive com o próprio partido, deixam-na cada vez mais fraca e isolada. O que estamos assistindo no Brasil é uma correlação de forças entre o grande capital transnacional cujos tentáculos se espraiam no Brasil através de empresas ditas nacionais.

É bem verdade que durante a gestão de Lula o Brasil fez parte e no fundo ainda faz, desse jogo de interesses internacionais exatamente por ter se tornado tão capitalista quanto os grandes países centrais outrora exploradores do Brasil. A política econômica imperialista brasileira na África e América Latina revela a face perversa de um governo supostamente popular em defesa dos mais fracos. O que se viu na prática foi outra coisa.

Hoje, quando os ventos da dinâmica econômica global arrefecem, quando o governo Dilma se mostra incapaz de dar sequência àquela onda de crescimento econômico e mergulha a Petrobras numa lama de corrupção, a resposta do capital internacional é imediata, inclusive com conspiração para sua retirada do poder colocando alguém com capacidade de acelerar o processo de acumulação capitalista. Aécio, sob o ponto de vista do entreguismo nacional e dos interesses internacionais é a menina dos olhos.

É claro que o PT, com incapacidade de se articular com os grandes líderes internacionais, como Lula conseguiu fazer, incluindo sendo um dos principais deles, vai apelar para o discurso nacionalista, inclusive conclamando setores do exército que defendem a Petrobras para se juntarem contra a privatização da empresa. O problema é que setores da sociedade que antes apoiavam tal partido hoje o detestam e ficou mais difícil a capacidade de articulação e mobilização social.

Por outro lado, os 13 anos de PT no poder criaram uma massa que foram incluídos no consumo, na cidadania e no acesso ao ensino superior criando uma ligação entre estes setores e esta concepção de gestão pública. Resta saber até que ponto estes setores seriam capazes de saírem às ruas em defesa da governabilidade de Dilma e até que ponto resistem ao bombardeio da grande imprensa que sistematicamente ataca o governo.

Se as obras do PAC tivessem avançado, se não houvesse superfaturamento nas obras da Copa do Mundo, se o governo Dilma não tivesse feito populismo cambial camuflando o preço dos combustíveis, se as obras de infraestrutura do país tivessem caminhando, se a economia do país estivesse bem, não disto estaria acontecendo, afinal, Lula governou em meio ao escândalo do mensalão e terminou o governo com incríveis 82% de popularidade.

Nos próximos meses vamos assistir o acirramento ideológico corpo a corpo, nas ruas, nas redes sociais, na grande imprensa e a capacidade do PT de virar o jogo ou não. Por enquanto está perdendo de goleada, com requintes de uma revolução em marcha.      




Entrevista com Arton, de Sirius. Parte II

  Entrevista realizada no dia 14 de fevereiro de 2024, às 20:00, com duração de 1': 32'', gravada em um aparelho Motorola one zo...