sábado, 10 de agosto de 2013

A s complexas relações culturais em São Luis

São Luís sempre teve uma relação ambígua com o Brasil. No século XVII se transformou na capital do Estado do Maranhão, em 1621, abrangendo os atuais estados nordestinos, exceção da Bahia e os atuais do Norte. Seu foco, atenção e desiderato sempre foi ser europeia, tal como Lisboa. Aliás, era com a capital portuguesa sua relação política e econômica, além de cultural. Era literalmente uma ilha dentro do estado, tanto que ao longo dos séculos XVII, XVIII e XIX foi conhecida como “ilha do Maranhão”, uma  “sinédoque cultural”: tomar a parte, São Luís, pelo todo, Maranhão. Sempre foi autocentrada, autorreferenciada, nunca se importou muito com o que acontece para além dos limites do Estreito dos Mosquitos.
 
Depois, a sanha de sua elite em querer ser europeia a cognominou equivocadamente de “Atenas Brasileira” em meados do XIX. Dois decênios depois, a sensação de nostalgia e decadência já rondava as bocas dos mesmos que a propalavam de Atenas, parte em função da débaclê econômica, parte, em decorrência da fuga das “inteligências” para o Rio de Janeiro. Seus grandes literatos participavam da construção da Academia Brasileira de Letras, da edificação do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, destilavam suas inteligências país e mundo afora. Para os que aqui ficaram a sensação era de abandono e vazio cultural. Abandono sim, vazio cultural, jamais.

Os tambores africanos sempre ecoaram na ilha, mesmo no período em que as elites tinham seus olhos voltados para o que acontecia do outro lado do Atlântico, ou mesmo na capital do império, Rio de Janeiro. A questão é que a cultura popular nunca foi foco e atenção ou mesmo elemento de compreensão de prática cultural, sempre marginalizada. Por isso, a elite ludovicense torceu o nariz quando a Beija-Flor, homenageando a cidade na Marques do Sapucaí, entrou com um enredo negro, africano. Como bem disse Josué Montello: “São Luís é uma cidade que dorme aos sons dos tambores”, hoje, cada vez menos. Somente a partir das décadas de 30 e 60 do século XX, já no governo Sarney, é que a cultura popular ganhou ares de interesse enquanto patrimonialização identitária e investimento público. 

A euforia do século XIX durou pouco tempo, embora ecoe até os dias de hoje como estandarte da identidade cultural da cidade, casos da Atenas Brasileira e da fundação francesa de São Luís. O passado é mais importante do que o futuro porque futuro não há. Além disso, o passado não toca a tangibilidade política, ou seja, como as coisas não aconteceram é sempre encapsulado como ideal, intocável, tradição, glória. A desgraça do futuro é um acidente que não aconteceu. É uma mera contingência, quando acontecer, se acontecer.

No início do século XX, já se falava em Vencidos e degenerados, livro de autoria de Nascimento Morais, uma bela análise das relações sociopolíticas de como as coisas funcionavam no Maranhão; herança perversa da escravidão e de como tal herança perpassava os padrões de sociabilidades densas, obtusas e pesadas. O Maranhão era a herança do massacre contra os balaios, a vitória da elite branca contra a africana. A derrota balaia foi o apanágio da destruição de um projeto civil e civilizacional distinto do que foi construído posteriormente; amorfo, racista, preconceituoso, excludente, visivelmente observado na tessitura urbana da cidade.

No início do século XX, uma primeira tentativa de apropriação da cultura negra. A Atenas cada vez mais distante era reeditada pela presença e marca únicas da herança africana; era a Black Athena, a Atenas revisitada com a incorporação da cultura popular na ordem do dia; basta ler a importante dissertação de mestrado de Antonio Evaldo Almeida, O Pantheon encantado: Culturas e Heranças Étnicas na Formação da identidade maranhense (1937-1965), sobre como a Igreja Católica, a imprensa e os intelectuais trouxeram a questão popular como instância herdeira do passado de glória, ou seja, a cultura popular era a própria encarnação da Atenas Brasileira.

A relação com o centro-sul continuava psicanalítica. Enquanto o Rio era a coqueluche nacional, São Paulo disparava contra a capital do Brasil com a Semana de Arte Moderna, em 1922. Foi um grito contra o provincianismo paulista e um elemento de disputa contra o Nordeste e Rio de Janeiro. O Maranhão, longe disso tudo, continuou reclamando da falta de emulação cultural.

Somente na década de 40 bradam os primeiros “ventos” do modernismo chegando ao Maranhão (controvérsia à parte) e o horizonte continuava sendo a reabilitação do cenário cultural de 100 anos atrás, ou seja, 1840. Era o início da nova fuga para o Rio de Janeiro de nossos poetas, jornalistas, como Ferreira Gullar, dentre outros, até aparecer o embate entre passadistas e modernistas, Centro Cultural Gonçalves Dias e Movelaria Guanabara, tendo este último grupo se constituído na plataforma política do grupo que futuramente seria cognominado de Oligarquia Sarney. Sarney, poeta e contista, ao vencer as eleições em 1966, levou para o escol político a geração que lhe granjeou a notoriedade intelectual e política.

Mas, o cenário cultural não se alterou. A década de 70 assistiu ao surgimento fantástico do grupo LABORARTE (Laboratório de Arte: teatro, dança, capoeira) e do movimento documentarista tendo como expoentes Murilo Santos e Euclides Neto, como forças estioladoras tentando romper o marasmo da cidade. Tudo era muito, muito difícil.

No final da década de 70 e início de 80, estoura a Gororoba, movimento artístico, os salões de pintura, a pungência da cultura popular através do tambor de crioula, apropriado por grupos que surgiam dia após dia, o carnaval de rua revitalizado, os festivais de canção, a nomenclatura MPM (Música Popular Maranhense), vários artistas, cantores, enfim, um movimento teatral, mas as coisas não ganham dimensões para além da ilha.

A década de 90 se notabiliza pela apropriação do reggae, revitalização do bairro da Praia Grande, pela tentativa de edição de livros de poesias de novos poetas, mas nada, nada ganha repercussão para além da ilha.

Nos anos 2000, continuaram a aparecer festivais de música, de teatro, pintura, artes plásticas, e a questão continua sendo a falta de continuidade e autonomia financeira, de autossustentação e dinâmica. Porque as coisas em São Luís não têm continuidade? Por que a cidade ricamente em cultura não é uma referência nem mesmo regional, se por todo o canto veem-se poetas, músicos, capoeiristas, dançarinos, artistas enfim, e se existe elemento de resistência e persistência em fazer do espaço público um lugar não apenas da circulação do capital, função axial da cidade na era industrial, mas de convivência da expressão da existência, da criatividade e da potencialidade humana? A resposta não é fácil e são várias as inflexões.

Uma questão é a economia. O Maranhão é o segundo estado mais pobre da federação, basta ver os vergonhosos índices do PNUD sobre os nossos IDH's. Os cinco municípios mais pobres do país são maranhenses.

Outra questão é a política. Exatamente pela pobreza econômica existe um mutualismo e uma relação de verdadeira submissão entre as instâncias econômicas e políticas. O estado é pouco industrializado, portanto, grosso modo, os salários são pagos pelos governos municipais (prefeituras) e governo do estado. Essa relação de dependência, além de estabelecer uma base de poder perversa, serve como elemento de controle social, de manutenção do status quo e do aparelhamento das instâncias e instituições que querem fazer alguma coisa.

O estado ainda mantem práticas oligárquicas desde o século XIX, mesmo com a derrota da Oligarquia Sarney, embora as bases deste poder remontam à década de 1940, assentada no grande poder dos senhores escravistas. O Maranhão é um misto da perversidade escravocrata, da relação de poder autoritária escravista e da promiscuidade do poder estatal controlando as instâncias republicanas. A bem da verdade, não há uma república no Maranhão, ou melhor, existe uma república a serviço da mentalidade escravocrata.

A oligarquia Sarney perpetuou essa prática mandatária escravocrata. O grupo Sarney ascendeu para derrotar a oligarquia vitorinista, sua antecessora; acabou perpetuando-a. É claro que ela não é a responsável por todas as mazelas do Maranhão, a cultura oligárquica e escravocrata presente até hoje é anterior a ela, mas aperfeiçoou os mecanismos de dominação, reeditou a inércia e o medo vitorinista, controlou as instâncias culturais impedindo que seus adversários promovessem um espaço de liberdade e criação artística, ainda controla parte do aparato jurídico, parte do Legislativo, parte do setor empresarial, as instituições midiáticas e se configura como um Leviatã, ou mesmo como um Argos, monstro de mil olhos a tudo vigiar.

Por outro lado, também acusar a oligarquia de ser a responsável por toda a mazela do estado virou uma espécie de salvo-conduto para os agentes e promotores da cultura não promoveram ou saírem do cerco fechado. Ela é grande parte responsável pelas mazelas do estado, mas é preciso ampliar a análise. As relações de compadrio apenas encontraram eco na oligarquia Sarney; a relação pessoalista, mandatária existe no estado desde o século XIX.

Ficar ou sair da cidade sempre foi um dilema para os promotores da cultura de São Luís. Sair e fazer a vida lá fora, ganhar o país, ficar conhecido nacionalmente ou ficar e ajudar a transformar o cenário da cidade é uma questão que perturba os que aqui vivem desde a década de 60 do século XIX.

São Luís sempre foi rica em diversidade cultural, não dá para nomear aqui o que está acontecendo nesse exato momento na cidade. O cantor e compositor Gilberto Gil certa vez disse que achava interessante o cenário cultural na cidade, autônomo, rico, autorreprodutor de suas bases e de diversificação. Isso continua acontecendo, acontece também que os produtores culturais também precisam sobreviver, terem amplitude, diversificarem o cenário e não conseguem nem mesmo articulação com outros agentes, e isso independe da política estatal, dentre outras coisas.

A política criou uma configuração perversa: a dependência do patrocínio, isso aconteceu no futebol, depois no carnaval de rua e agora se espraia pelo São João. 

Em Recife, na década de 90, não estava acontecendo nada, mas aconteceu o movimento mangue beat, tudo aconteceu. O problema é que em São Luís as coisas acontecem tanto quanto em Recife, Salvador, mas não têm repercussão, continuidade, fôlego e amplitude; se resumem aos seus feitores.

A cidade não tem praça, parque, shows gratuitos, atividades nas praias, e os eventos são méritos de seus realizadores, muitas das vezes nadando contra a corrente. O turismo na cidade é pífio, o Centro Histórico está caindo aos pedaços, não tem transporte público decente e eficiente, é suja, esburacada, transito caótico. A riqueza cultural dos bairros está se perdendo porque não existe promoção de eventos nesses espaços, quase sempre obrigando as pessoas ou a se deslocarem para o Centro Histórico decadente, e que não funciona aos domingos, ou a se deslocarem para a Lagoa da Jansen, os ricos, ou para a Litorânea, os que têm carros, caracterizando uma exclusão social.

O cenário cultural da cidade é tão medíocre, que a Biblioteca Pública Benedito Leite, a segunda mais antiga do país, ficou fechada por mais de dois anos, a Praça Deodoro, o coração da cidade, a mais importante, era até pouco tempo um lixo a céu aberto. Na cidade não existe um mercado editorial consistente, alguns poetas que se acham intelectuais se locupletam em cargos do governo municipal e estadual.

O cenário pulsante da cidade está em toda a parte, sobretudo na periferia. Lá, longe dos auspícios do governo, as pessoas se divertem, vivem, são felizes aos seus modos, muitas das vezes não podendo se deslocar para o centro da cidade porque o transporte público nas madrugadas é precário, além da violência dos assaltos.

Algumas ações poderiam ser realizadas na cidade, tais como: editar uma virada cultural na cidade em busca dos talentos perdidos e subterrâneos; promover um mercado ou possibilidades de publicação de autores sem recursos; incentivar o teatro amador; promover festivais de hip hop e debates sobre inclusão social; construir praças e logradouros com atividades aos finais de semana; criar espaços para exibição de grafitagem; oferecer cursos de cinema e de edição de vídeos com mídias de baixa resolução; promover festivais de música para todos os gêneros com recursos públicos; promover oficinas de escrita e leitura em praças públicas para todas as idades; promover um seminário criticando as Universidades sobre os seus isolamentos e falta de interlocução com a sociedade; construir bibliotecas em vários lugares; jardinar e plantar árvores na cidade; promover um fórum permanente sobre educação e cultura; reeditar obras raras e doá-las para bibliotecas nos bairros; transformar as escolas e Universidades em centros culturais; oferecer cursos de captação de recursos em editais federais e privados pelo país afora; transformar as secretarias de cultura municipal e estadual em órgãos colegiados com sessões e plenárias públicas mensais; recuperar o estaleiro escola e promover passeios de barco no entorno da ilha; ampliar os cursos de pintura em azulejo e recuperar os casarões do Centro Histórico; ampliar a mobilidade urbana com transporte público decente; construir ciclovias; transformar o Centro Histórico em espaço de moradia para servidores públicos, pessoas de baixa renda, bem como numa zona cultural e acadêmica; estimular a interação entre os bairros com um calendário anual das atividades desenvolvidas nestas zonas; Incentivar a frequência ao Cine-Praia Grande, um dos dois cinemas de arte da cidade, e não permitir o seu fechamento; construir salas de exibição de cinema de arte nas periferias; garantir a transparência, a lisura e aplicação dos investimentos e repasses públicos em todos os setores da atividade administrativa pública; estabelecer uma interlocução com o setor privado garantindo a aplicação da contrapartida dos seus investimentos em educação e cultura; implantar uma rede wi-fi de internet gratuita em espaços públicos.

           






Um comentário:

  1. aconteceu a virada cultural de Santa Rita,semana passada, e percebi a inércia dos promotores esculturais mas, mesmo nesse estado de coisas, conseguimos traçar varias diretrizes e políticas para a cultura do nosso município. suas dicas preenche ainda mais e resgata o símbolo cultural

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