quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Do caso da agressão aos médicos cubanos

Eu vou responder a provocação do meu amigo, Profº Wagner Cabral, da UFMA, que, me citando sobre a reação da direita ultraconservadora brasileira durante as jornadas de junho e julho, cutucou-me indagando como fiquei perplexo com o que aconteceu, imaginava como eu reagiria diante do episódio da agressão verbal a que médicos cubanos foram acometidos quando de suas chegadas ao Brasil, mais precisamente em Fortaleza. Aos desavisados, eles foram vaiados e cognominados de escravos. Bem Wagner Cabral, aqui segue minha resposta indignada. 

Não é de hoje os privilégios a que classes mais abastadas gozam no Brasil desde o período colonial e republicano, vide termos sido uma sociedade escravocrata, aliás, a penúltima a abolir a escravidão, Cuba foi a última. Nesta sociedade altamente excludente, cujas taxas de iletramento eram altíssimas, ler era um privilégio de poucos, afora os mais aquinhoados que singravam o oceano atlântico e conseguiam seus diplomas em Universidades europeias, notadamente a de Coimbra. 

Em seus retornos se tornavam a intelligentsia (a nata) do pensamento politico e intelectual brasileiro, por vezes ocupando postos de presidentes de províncias, cargos eletivos nas Assembleias provinciais e Geral, quando não em postos na magistratura. 

Eram cognominados de doutores, mesmo sem doutoramento, haja visto ser dificilíssimo ler e escrever no Brasil, quiçá graduar-se em uma universidade europeia. A primeira faculdade brasileira foi a de Direito em Recife, seguida da escola de São Paulo. A faculdade de Medicina somente em fins do XIX apareceria, daí não ser difícil entender como advogados e médicos eram vistos no Brasil. Nascia a tradição bacharelesca brasileira: excludente, racista, classista. 

No Brasil acontece um fato engraçado, para não dizer escroto; rico estuda nas melhores universidades publicas do pais em cursos altamente concorridos, tais como medicina, direito, odontologia; pobre, estuda em cursos de baixa concorrência, notadamente as licenciaturas, quando não em faculdades privadas. Isto é decorrência do modelo educacional esmagador, excludente, destruidor de sonhos e esperanças.

Ai, como os aquinhoados geralmente são filhos da classe média alta, depois que se graduam, montam seus consultórios, quando não enriquecem em hospitais particulares sem nenhum retorno social, ou seja, a sociedade brasileira paga para perpetuar a exclusão social. 

Toda regra tem exceção, claro, e todo argumento precisa excluir e segmentar quem é quem, com o risco de generalizações. A parcela dos que vaiaram os médicos cubanos em Fortaleza foi uma minoria, mas é representativo de uma parte da categoria, da mentalidade pequeno-burguesa brasileira concentradora de renda, moralista, corporativista, corrupta.

Para usar uma expressão do Profº Wagner Cabral, esse episódio é a máxima expressão da hiperpolitização a que o pais está imerso desde sempre, com enfase mais aguda após os episódios de junho e julho. As jornadas de junho e julho trouxeram questões mais que significativas para todo mundo ver. Acabou a máscara da democracia racial explanada pelo racista Gilberto Freyre e do mito da cordialidade brasileira, conjectura do genial Sérgio Buarque. Agora as coisas estão muito claras e ficam mais nítidas as grandes diferenças ideológicas no país. Ufa!!!! Já não era sem tempo.

Vaiar, xingar, detratar qualquer profissional, além de corporativismo, elitismo, é a expressão do simbolismo de uma elite perdida que não abre mão dos seus privilégios, faz reserva de mercado, deixa o interior do país inteiro morrer à minguá sem médicos, pasmem, mesmo com prefeituras pagando até salários de R$ 30.000,00. O Estado brasileiro nunca deu estrutura e condições de trabalho? É verdade, mas culpem os governos que desde 1500 sempre expropriaram a parcela mais pobre da população. Cadê o dinheiro da CPMF? 

Médico, alguns, claro, não querem deixar as capitais sobre o argumento de que as cidades do interior não possuem condições de moradia e os hospitais são precários. Mas afinal, são cidades fantasmas? Por um acaso não existem pessoas morando? Quais hospitais são verdadeiramente equipados? E o juramento de salvar vidas sob quaisquer circunstâncias? R$ 10.000,00, R$ 20.000,00, R$ 30.000,00 são baixos salários? São altos em qualquer lugar do mundo. 

Ademais, não ficamos indignados quando em Portugal os odontólogos brasileiros foram detratados, expulsos sob o mesmo argumento corporativista? Agora um grupo da máfia de branco faz a mesma coisa com colegas de Cuba? 

Sabe o que se esconde por detrás dessa atitude? A revelação do caráter ideológico de parte da elite brasileira que não está acostumada a dividir o quinhão do bolo, ademais, existe um medo da corporação entre as duas formas de tratamento: da medicina preventiva, modelo cubano, e da "curativa", a mais cara, excludente, atrasada, atrelada ao quartel das grandes redes farmacológicas, da indústria de saúde que não possui nenhum interesse em diminuir o número de internados nos hospitais brasileiros que são verdadeiras zonas de matar gente.

Quem nunca esteve num consultório e viu chegar os representantes comerciais de grandes marcas de remédio para falarem com os médicos? Quem não sabe que existe uma parcela significativa de médicos que ganham bônus pela quantidade de remédios indicados de certas indústrias? 

Ora vamos gente, vamos deixar de balela, a industria da saúde é uma mina de ouro e muitos jovens são atraídos para a carreira não por vocação, e sim por privilégios de toda ordem. Isto está diretamente correlacionado ao papel que o estado sempre exerceu a serviço dos interesses capitalistas, dos setores dominantes, permitindo o sucateamento de escolas e hospitais, não direcionando vocações profissionais, tudo para permitir que segmentos sociais, a elite, quer seja econômica, politica ou cultural dessem e comandassem as regras do jogo. Todo mundo sabe que no interior do Brasil médico é Deus, por vezes se utiliza da carreira para se lançar a prefeito, ganhando eleições e perpetuando a miséria nos municípios.

Vamos deixar de falsidade, esse episódio é apenas a ponta do iceberg das grandes contradições e mazelas deste pais excludente, racista, elitista, corrupto. 

Sejam bem-vindos médicos cubanos, nuestros hermanos. Mostrem para a máfia de branco brasileira, nem todo médico pertence a máfia, o que é medicina preventiva e salvam os milhões de brasileiros que, longe dos grandes centros, jamais seriam socorridos.                             

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Reouvindo a música: “Ninguém pode mais sofrer", de Geraldo Vandré”

Autor: JOSÉ ANTONIO BASTO

Poeta 

“Quem vai escutar, quem vai entender/ Ninguém pode mais sofrer / Amor é pra dar/ Viver pra viver / Ninguém pode mais sofrer. [...]” Estes são alguns dos primeiros versos dessa magnifica canção do imortal artista da Bossa Nova Geraldo Vandré, exilado na Argentina no período ditatorial de 1964, o mesmo autor de: “Pra não dizer que não falei das flores”. Vandré na música acima citada relembra o Prólogo do livro “Espuma Flutuantes”, do Poeta Castro Alves, onde este deixa bem claro sua viuvez com o mundo, com os amigos, com as moças que passara pelos seus braços... bate mais forte ali o sopro servil do coração, o pélago da alma mais sofrida.

A música diz que “amor é pra dar e o mundo inteiro um dia vai cantar que ninguém pode mais sofrer.” Um cenário recheado de esperanças onde o “Eu lírico” implora pra não mais sofrer, talvez por já ter sofrido tanto. Às vezes o sofrimento observado pelo avesso da arte faz com que a vontade de vencer supra todos os obstáculos interior da pessoa. O pessimismo exacerbado nem sempre é tão ruim e, transformado em poesia com certeza fica mais bonito e admirável. 

A tragédia, a desgraça e a solidão enxergada com os olhos da lírica individual, da arte em geral, percebe-se então um tom especial. Muitas obras de grandes artistas nasceram da experiência do próprio sofrer e das decepções amorosas, do extinto, do coração e do exílio. 

O jovem poeta Alvares de Azevedo, maior expoente da terceira geração do romantismo brasileiro, em sua “Lira dos vinte anos” em diversos dos seus poemas pode-se perceber a desgraça e o insucesso de amar...ele não consegue achar o remédio para os condenados criarem e recriarem sua arte, pois a poesia romântica não é somente pra falar de flores, de amor, do belo... do positivo em fim...mas do obscuro e da negatividade da vida que ao mesmo tempo a partir de então se torna expressivo o interesse de ver e viver. Experiências de amor frustrado como o poeta Gonçalves Dias viveu desabafando em sua tragédia de amor “Ainda uma vez, adeus”, ele narra o seu último encontro casual com a jovem Ana Amélia do Vale aquela que os pais o negaram sua mão num jantar entre amigos, a partir desse momento o poeta envergonha-se... e auto se exila por amor, vive, sonha, sofre e morre tragado pelo mar num naufrágio inesperado. Nos versos o poeta declara seu sentimento de culpa por não ter lutado pela mulher amada de seus sonhos, de sua vida, poderia ele e tinha força suficiente para desafiar o pai, a família, a sociedade e preconceito da época para viver eternamente com Ana Amélia do Vale.

Esses são casos que comparadamente com a música de Vandré prima-se por uma coisa fundamental da produção artística – “mostrar de fato aquilo que o coração pede,” isso sim é a verdadeira arte e nem sempre tudo o que está sendo exposto no momento. 

Isso aconteceu muito durante a história e foi comum em trabalhos feitos por encomendas: O artista plástico espanhol Francisco de Goya foi um desses grandes exemplos, Goya durante sua vida como artista ganhava seu pão de cada dia pitando caricaturas de pessoas da nobreza, reis e rainhas... Ele pintava por encomenda e viveu desse ofício por muito tempo. Com o passar dos anos Goya descobre uma doença que lhe deixa muito triste e isso então se reflete em sua arte, ele começa a dar um outro tema para suas criações já não mais por encomenda; a alegria desapareceu lentamente de suas pinturas, as cores se tornaram mais escuras e seu modo de pintar ficou mais livre e expressivo. Sabendo que não iria mais pintar por muito tempo, o artista deixa falar o coração: telas assombrosas como por exemplo:”El sueño de larazonproducemonstruos” – onde ele expressa sua força e forma gótica e vivacidade, corujas e monstros rodeiam um jovem poeta atordoado que dorme lentamente sobre uma escrivaninha. 

Sua obra a partir de então deixa mais exposto o escuro, o negativo... o seu sofrimento. Foi com esse tema que Goya ganhou popularidade e fama até os dias de hoje. Viver já é a mais importante coisa que a pessoa deve fazer e sobretudo a mais célebres das artes. O ser humano é cheio de paradoxos... contradições; hora para a alegria; hora para o pranto sem controle. Geraldo Vandré foi um artista desse tipo não apenas em “Ninguém pode mais sofrer”, mas em muitas outras de suas admiráveis obras. Gandhi estava certo quando afirmou que a vida só tem sentido se não temos medo dela, pois o coração nem sempre consegue separar as pressões do dia-a-dia, da carne, da alma e do destino.



sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Paralela

Um fim de tarde aprazível, ainda que no começo o calor tivesse sido descomunal. Dois chopes sobre a mesa. Uma prato de calabresa ao molho de cachaça. Relembranças de um tempo não tão distante, de quando a penúria da vida era pesada pelos sonhos vindouros na esperança de que dias melhores encobrissem aqueles de dificuldades. O lugar nada agradável, cada vez mais corriqueiro com essa péssima mania de colocar televisores de alta definição com suas gigantescas telas full screen sendo um atrativo mais importante que os encontros, marcados, casuais e fortuitos, atraindo atenção e sendo ao mesmo tempo atrativo para se estar nesse lugar, sobretudo com o volume às turras, irritando pessoas que querem conversar, não assistir a novelas ou programas de fim de tarde de caráter sensacionalista. 

– Me diz, Abelardo, como vai a vida? 

– Quanto tempo, hein, Sorato? Pois é, depois daqueles tempos de penúrias muita coisa mudou. Agora administro minha própria empresa, não sou mais empregado, toco com uma certa dificuldade os negócios, mas enfiei a jaca de uma vez e me empenho o bastante, o suficiente para ocupar meu tempo e esquecer minha crise conjugal. 

– Então as coisas não vão bem no casamento?

– Não, e acho insolúvel. O tesão foi embora de vez e a vontade de tudo se ajeitar. 

– Pelo menos o trabalho ocupa um lugar importante e ocupa tua cabeça, né?

– Mais ou menos, só me sinto realizado de fato quando escrevo. Ali me escondo e me apresento ao mundo me vingando da pequenez da vida, das coisas que não deram certo e tento pela escrita reescrever uma vida que gostaria de ter vivido.

– E contigo, Sorato, como vão as coisas? 

– Te lembra quando conversávamos sobre minha vontade de escrever contos? 

– Sim...

– Me aventuro vez por outra a escrever contos e isso ocupa um espaço cada vez mais importante. A mediocridade acadêmica me irrita cada vez mais. O lugar que era por excelência da crítica ao fordismo da vida se tornou ela mesma um locis produtor de fábrica de baboseira, repetição de velhas ideias, sem oxigenação, sem transgressão, um amontoado de práticas repetitivas preocupado em engordar o currículo, de olho na produção tal e qual se montavam as peças de uma indústria de automóveis no inicio do século passado. A surdez é uma das principais características dessa nova academia; apática, distante da sociedade, autorreferenciada, cuja escrita é cada vez mais estéril. As exceções são cada vez mais exceções. Por incrível que pareça, transgredir virou démodé, antiquado.  

– Que bom, Sorato, fico feliz, mas vai uma dica sobre escrever contos. Se empenhe cada vez mais em escrever, no entanto, não espere, nem crie tanta expectativa quanto à recepção, caso contrário, vai se frustrar bastante. Não espere nem mesmo dos mais próximos e chegados que leem seus textos, muito menos que entendam sua relação com a escrita. Só quem escreve sabe o que estou falando. Eu escrevo para exorcizar minhas angústias e sei que todo escritor quer ser lido, depende disso, mas eu foco na minha vontade de escrever e dar vida a alguma ideia. Me contento com o fato de saber que alguém irá ler, quem quer que seja, em algum lugar. É como uma garrafa lançada ao mar, em algum momento alguém irá recolher... Ah!! E quanto à mediocridade da academia, faz o que eu fiz: criei uma vida paralela. Os negócios pagam minhas contas, me dão condições de me esconder durante seis dias na semana me ocupando com as coisas do cotidiano e rotineira para, no domingo pela manhã, quando me desligo do mundo e me tranco no escritório poder ser, ainda que por alguns instantes, eu mesmo.                        









quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Divertindo-se com as palavras. A difícil arte de aprender

Era um livro colorido com gravuras pueris recheado de palavras e números às vezes saltitantes. Era difícil fechar os quadros. Quanto é mesmo 2 x 8? Assim, se não soubesse a conta não se poderia continuar a preencher o próximo balão. Aquele livro, embora colorido e cheio de gravuras, também continha uma concepção didático-pedagógica de difícil assimilação para uma criança com dificuldade de aprendizagem lógica, sobretudo se sua inteligência fosse corporal e mais criativa, e não necessariamente numérica. 

Aquela educação não era compatível com o desenvolvimento psicossocial da maioria das crianças em idade escolar entre 4 e 7 anos. A pressão por aprender só tornava as coisas ainda mais difíceis. A sensação de pequenez, de ser burro e que não adiantaria estudar tornava a hora de aprender um suplício e uma tormenta. Sebastião olhava para a rua onde os gritos de seus coleguinhas aturdiam aquelas tardes tórridas correndo atrás da bola sem que suas pernas pudessem manobrá-la, ziguezagueando os adversários, tentando ultrapassar a barreira – dois tijolos separados em posição vertical, cujos furos sustentavam duas hastes de madeira representando as traves –, e que suas pernas unidas, sentado como estava, tentavam driblar a dura marcação de sua mãe cobrando-lhe os deveres, quais tinha muito dificuldade em aprender. 

Um outro livro colorido agora se encontra sobre a mesa. Sebastião agora virou homem. Seus livros não são mais brincando com as palavras, embora seja isso que tente fazer todas as vezes que escreve. A sua frente, uma menina folheia o livro. Gravuras pueris recheadas de palavras e números, às vezes saltitantes. Dessa vez, é mais fácil juntar as sílabas, contar os moranguinhos, associar nomes a objetos. A capacidade de compreensão maior é nítida, a inteligência é perceptível, o raciocínio idem. O que se pede nesse livro novo é diferente do outro, separado pelo tempo e por visões diferentes de educação. A capacidade associativista é maior que a mnemônica. Correlacionar é mais importante do que decorar, embora memorizar seja o primeiro passo para aprendizagem. 

Na frente não mais um portão grande e cinzento separando a casa da rua, dos gritos aturdidos de crianças jogando bola. A diversão agora é outra: canais de televisão pagos com dezenas de desenhos instrutivos, mas que conferem o mesmo grau de competição com o ato de estudar como no passado. Divertir ainda é melhor que estudar, sempre. Por vezes, a menina corre a mão num celular de última geração, touch pad, mil jogos interativos, até educativos, e sempre mais atrativos que o colorido livro de gravuras e balões.

Sebastião questiona por que o celular e os canais de TV a cabo são mais atrativos que estudar. Às favas as regras gramaticais. A menina enche Sebastião de perguntas sobre o porquê daquela separação silábica, o que é um dígrafo, por que a letra E sozinha tem som de I. Sebastião incauto briga com a linguística, questiona quem inventou as regras, as letras. Como é difícil explicar para uma criança como um símbolo representa um fonema e que existe uma lógica para escrever quando os rabiscos impingidos na superfície branca do papel não obedecem regras, sentidos, a não ser a vontade de dar leveza às mãos dos sentidos existentes na mente ainda sem formato definido, pelo menos para uma leitura formal.

Ainda assim, é preciso continuar o exercício de ensinar a conjugar as vogais, somar, multiplicar, pois que para além da brincadeira despretensiosa dos rabiscos no papel, existe um mundo lógico, o qual proporcionou a montagem dos desenhos coloridos da tv a cabo, a montagem da estrutura eletrônica do celular touch pad e a gramatura do livro colorido, cuja intenção é ensinar brincando.

O prosaísmo prepara a estrutura didática para ensinar as crianças a aprenderem, embora a poesia da brincadeira seja uma forma sublime de suspender a vida para além da seriedade de uma vida depois da ludicidade. Aí, as crianças brincando aprendem que para além de se divertir existe... Apenas o se divertir. A diferença entre a menina e Sebastião é exatamente esta: ele já se esqueceu do que é ser criança.

                                















quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Caixa de Raiva. PARTE I: Life is a tragedy.

Por Tonny Araujo

Um sangue espesso mistura-se com a água do esgoto, propiciando um líquido ironicamente homogêneo, enquanto aos berros um garoto é espancado por outros dois em frente ao Fine Arts Museum. Aquém desta situação - que aos olhos de algum nauseabundo religioso, ou mesmo das famílias tradicionais e escravas dos costumes mantidos intactos até as primeiras décadas do segundo milênio era inconcebível - podia se ver os olhares atenciosos de Harry e Suzy Smoother. O casal se mantinha atônito com os preços elevadíssimos do supermercado, se pudessem, consultariam suas Caixas cara a cara com o dono do estabelecimento. Porém, se sentiriam sujos de Raiva Ideal. Tomaram o caminho de volta para buscar mais dinheiro.

-Ei, meu amor que dia é hoje? Acho que é meu aniversário. Exclamava Harry com um sorriso sacana no rosto.

-Engraçadinho! Sempre com essa história. Pois, fique sabendo que não vou te dar mais presente algum. Argumentava Suzy enquanto cobria carinhosamente o rosto de Harry com as duas mãos.

Os dois viviam em Fort Point em uma casa relativamente confortável, e conforto em 2085 significava ter um teto, por mais que houvesse neste muitos buracos, logo goteiras irritantes. É que depois da Terceira Guerra Mundial a tecnologia avançara bastante, porém a propriedade física e privada já não era a principal preocupação do Estado, tampouco dos órgãos públicos.

Muito acomodados em sua cama de casal os recém-casados assistiam o noticiário da tarde no mais novo Computador de Lazer de Suzy.

Boa tarde. Hoje é dia de reavaliação. Você que adquiriu seu aparelho há mais de dez anos, deve se encaminhar aos postos credenciados pelo governo para fazer um check-up. Os postos possuem o símbolo do Punho Fechado para que os cidadãos não corram o risco de serem assaltados pelos Clandestinos. Hoje, também é dia de diversão. O Cinema...

-Não posso acreditar meu amor, vão passar aqueles desenhos animados que você adora e alguns filmes daquele diretor... Tarantigo, não é? Indagava Suzy com seu seco sarcasmo.

-Nós somos o único casal nesse mundo com bom humor? É Tarantino, minha pequena. E, obrigado por me avisar, vou... Fez uma pausa para pensar, e prosseguiu: Vou dar uma olhada nos preços e, se estiverem razoáveis, volto para te buscar. Está bem?

-Trato feito! Não demore, então.

-Beijos! Beijos! Dizia Harry daquela forma boba que apenas os apaixonados presumem entender.

Enquanto tomava o táxi que o levaria para perto do NostalgicMovieandEntertaiment, Harry dividia sua atenção pelo cheiro agradável de novo do veículo, os buracos restantes nas ruas e os grafites nas paredes feitos pelas gangs de Chinatown: suas inspirações ficavam em alta toda vez que encontravam um cartaz de propaganda política do presidente Stuart ILL. A Raiva Ideal só podia se transformar em arte subversiva, visto que não podiam, segundo a nova legislação, liberá-la de forma física.

-Cabrones! O motorista sussurrou como se estivesse conversando consigo mesmo. Demonstrando a fragilidade de seu estado contido, logo se exaltou:
-Un montón de vagos, compadre! Gritava o taxista, deixando uma baba percorrer-lhe a barba.

Sem jeito, Harry fez sinal de positivo com a cabeça e apontou o lugar no qual gostaria de ficar. Pagou a corrida e saiu apressadamente, afim de não se atrasar para a primeira sessão.

Depois de comprar seu bilhete, já havia se passado exatos cinco minutos desde o começo de uma série de desenhos animados clássicos que sempre antecedia os filmes de época, uma estratégia dos Idealizadores para unir mais de um público no mesmo espaço e assim lucrar bastante. Harry ajustou-se desajeitadamente na poltrona, pôs seu refrigerante do lado direito e um enorme saco de pipoca entre suas pernas – uma mania que datava sua mais tenra infância – lançando um olhar penetrante e hipnotizado direto na tela.

"É a visão mais esplêndida que já vi!", "esse ratinho é um filho da mãe mesmo, vai jogar a bomba em cima do gato gordo", "nossa! Como o cinema está cheio hoje"... Tais pensamentos passavam pela mente de Harry, e desapareciam rapidamente por causa de sua paixão pelo cinema.

Gargalhadas enchiam o espaço toda vez que uma cena engraçada era apresentada, e no meio de um desses momentos de êxtase Harry virou a cabeça para o lado esquerdo da sala. Achou no mínimo curiosa a cena de um garoto muito jovem chorando ao olhar a mesma cena que fizera todos chorarem, mas de... Alegria, talvez.

Sua atenção foi roubada pela sensação de frio que o refrigerante derramado em suas calças suscitou. Neste momento, levantou a cabeça e olhou um homem alto e mal encarado gritando. O idiota percebeu que Harry estava em estado ponderante e resolveu jogar nele o restante da bebida.

- Ei, por que fez isso, babaca? Indagou Harry tomado de fúria.

- Sai da minha frente, bundão! Não está vendo que quero passar? Saia! Ordenou o estranho.

Harry não queria acionar sua Caixa de Raiva, porém pensou bem, afinal de contas se não o fizesse, não só ele, mas toda a sociedade poderia pagar com sua covardia.

Pôs seu dedo suado na máquina e apertou o botão vermelho localizado na parte traseira do aparelho. A invenção recolhia todos os dados da situação: as características dos indivíduos envolvidos no conflito, suas razões, se a raiva era, ou não uma Raiva Real, para somente depois dar o seu veredito. Uma tela mostrava o ícone de um cadeado abrindo, algumas máquinas, dependendo de quanto dinheiro se tinha até possuíam uma gravação de áudio para eventos banais, a máquina de Harry, porém era um tanto rústica. Coube-lhe ler atentamente as instruções:
"O indivíduo de nome TravisFuzzy, código 025568, barramento 002, segundo o artigo 129, está perturbando e atrapalhando um momento de lazer e tempo livre, além de agredir fisica e verbalmente o indivíduo Harry Smoother, código 852694, barramento 512, sua penalidade..."  Um sorriso começava a estampar o rosto de Harry. Então, o veredito foi impresso.
"Dois socos na região nasal e um chute na região estomacal."

Harry levantou-se rapidamente e deferiu dois socos no rosto de seu alvo, aproveitou enquanto o mal educado se apoiava nas outras poltronas e completou com um chute em seu estômago. O indivíduo caiu se contorcendo ao chão. Todos continuavam assistindo tranquilos o desenho animado. O encrenqueiro nada podia fazer, pois as prisões ainda existiam e eram destinadas aos Clandestinos, pessoas que viviam de furtos, de alucinógenos, e o pior de tudo, utilizavam a Caixa para fins improdutivos.

Feliz por seus direitos cumpridos, Harry sentou-se cuidadosamente na poltrona. O filme já ia começar.

Horas depois, já na saída do cinema, Harry encontrou a mãe da criança que estava chorando, percebeu que ela falava em linguagem de sinais com o filho, então entendeu porque o menino chorava tanto. A verdade é que, como não podia ouvir os sons envolventes dos desenhos, as cenas de violência lhes eram brutais, tristes e irracionais. Porém, Harry não havia porquê se emocionar com tal acontecimento.

Ele era um daqueles admiradores dos hábitos dos antigos homens, por terem criado em seus objetos de consumo uma saída para suas mentes doentias, por isso não perdia a oportunidade de tentar entender como o mundo funcionava naquela época. O cinema era uma das criações que mais o intrigava. Chegava até a rir internamente da capacidade daqueles homens de simular neles mesmos sentimentos dos quais não tinham coragem de assumir, ou não lhes era permitido em meio à sociedade. Como um pecado de omissão. A raiva era um deles. Felizmente, para ele a civilização estava no caminho certo.

Porém, nem todos concordavam com a nova forma de Estado que surgira depois da terrível guerra entre Estados Unidos e a Coréia do Norte. A policial Eve Jones era um caso curioso em meio ao sistema vigente. Há 10 anos havia se casado com o, então amor de sua vida, o chefe de polícia Bill Suffer com quem tivera dois filhos e desconfiava estar grávida do terceiro. Eve estava feliz com o casamento, até descobrir no marido uma tendência à agressividade descomunal. Esse detalhe não seria ruim dado o momento histórico, porém todas as vezes que Eve acionava sua Caixa de Raiva, os enquadramentos adicionavam mais e mais irregularidades ao comportamento de Bill, e proporcionalmente recomendava que Eve tomasse as devidas providências, sendo estas completamente ignoradas.

 "Máquina imbecil, você não sabe coisa alguma sobre sentimentos", "esse Presidente é realmente um monstro por ter legalizado isto!", "como poderia machucar o amor da minha vida?". Eram os pensamentos diários de Eve todas as vezes que olhava para sua Caixa, localizada no lado direito de sua cintura. "Meu Deus, o que vou..."

- Mamãe, que marcas são essas em seu braço? Perguntava seu filho mais novo, John Suffer de oito anos, interrompendo um momento de conflito interno da mãe.

- É só um sinal, filhote! Respondia constrangida.

- Já está tarde, John! É hora de ir para a caminha, mocinho. Amanhã você tem escola, lembra?

- Ah! Essa não. E saiu correndo pela escada, sorrindo. Eve, então entrava propositalmente na brincadeira, perseguindo-o até seu quarto, deixando escapar um choro tímido.

Eve desejava que suas lágrimas fossem apenas de tristeza, ou de felicidade pelo menos uma vez, porque pensava não existir algo mais destrutivo do que cair em prantos sem saber exatamente a razão pela qual elas molhavam seu rosto. Como um sentimento inominável.

Cansada, depois de um dia inteiro de trabalho deitou-se na intenção de esperar Bill, de repente até fazer amor do jeito que ele tanto gostava e contar-lhe sobre sua possível gravidez. Tirou sua saia cinza-grafite de tecido brocado curta, guardou seu blazer preto e pôs uma leve camisola de seda. Um sono profundo apoderou-se dela.

Horas depois, Bill bate a porta.

Roupas surradas, e um odor insuportável se manifestavam através de seu corpo. Seu hálito denunciava mais uma noite de orgias e bebedeira no Hot Hell, um bordel de quinta categoria localizado na Charles Street, frequentado pelos mais prestigiados homens de bem. Bill costumava ser assíduo, no entanto, antes para conseguir contatos de pessoas influentes. Seu foco mudou completamente depois de dar uma boa olhada nas moçoilas da casa, principal produto de consumo.

- Abra essa porta, Eve! Abra! Batia violentamente o bêbado, imaginando ser aquela superfície de madeira o rosto de sua esposa.

- Abra vaca maldita!

Eve deu um pulo ao ouvir as batidas do marido à porta. Cobriu-se e desceu tão rápido que quase torce seu pé esquerdo na escada.

Mal abrira a porta e Bill lançou as duas mãos sem seu pescoço.

- Nã... na.. nã-o, a-am... Amor! Amo-or-or? Implorava Eve desesperada.

- Cala sua boca, odeio sua voz. Jogou-a em cima de um cômodo de madeira, fazendo com que ela machucasse o rosto.

- Durma no sofá, não quero dividir a cama com uma mulher tão feia quanto você. Queria uma daquelas gostosas... Gostosas.

Eve esfregava seu rosto ao chão como se ali pudesse encontrar alguma resposta. Olhava para o teto como se Deus estivesse ali e aquele fosse seu Céu particular. Infelizmente não obteve nenhuma resposta.  A ferida em sua face não significava nada perto do horrível sentimento que aquelas palavras suscitaram em seu orgulho. Então, como em algum tipo de oração, acionou o botão vermelho da máquina.

"O indivíduo de nome Bill Suffer, código 212352, barramento 884, segundo os artigos 124, 125 e 139, agrediu o indivíduo EveSuffer, código 789654, barramento 566, impediu o nascimento de um ser sem o consentimento da mãe, e a difamou inescrupulosamente, a pena para este crime: Amputar-lhe o..."

Eve jogou a máquina para longe, evitando ler o veredito. As folhas não paravam de ser impressas pela Caixa de Raiva, que enfeitava o chão com a frase em letras garrafais: AMPUTAR-LHE O ORGÃO SEXUAL.

O que seria uma noite de entrega sem restrições ao marido, se tornou o verdadeiro inferno. A policial desabou em lágrimas sinceras ao ver uma marca de sangue por entre suas pernas, e mal conseguia pensar na ironia da situação, pois aquele líquido carmesim geralmente associado à vida, não passava da prova mais cruel de existência da dor e da morte.

A Caixa de Raiva fora desenvolvida em um momento em que os seres humanos estavam cansados das guerras que minavam a vida de milhares de pessoas fossem elas próximas, ou não. O presidente Stuart ILL, um ex-cientista e também psiquiatra, antes mesmo de ser eleito, observava que as nações envolvidas em todas as guerras da história nunca determinavam um ataque antes de munir umas pelas outras, certa quantidade de ódio, porém um ódio que somente era possível por causa da inveja, da cobiça por algo que lhes era interessante, e que as conectava. Foi, então que percebeu algo espantoso: O ser humano observou ele, possui tanto a capacidade de amar, como odiar de forma inerente, e isso é óbvio.

A novidade é que o ódio, assim como o amor também nasce de uma necessidade de compartilhamento. Tal como o amor, se esse ódio não for liberado de forma proporcional e legítima pelo próprio indivíduo, este enquanto engrenagem do bom funcionamento, não apenas da ordem, mas da própria força produtiva que mantém a sociedade, desfaleceria. A raiva não nasce do caráter instintivo do homem, mas racional e devia ser aplicada legalmente através de um aparelho que educasse os cidadãos a serem eles mesmos seus próprios juízes e réus. Ao aparecer nos programas políticos com a promessa do novo invento e de suas propostas de reformulação legal, a maioria tomada pelo patriotismo, e desejo ardente pelas benesses da "autonomia" fez questão de votar nele e influenciar a opinião pública para o mesmo.


Com a vitória de ILL, como em uma rápida piscadela, os aparelhos estavam sendo testados em laboratórios, patrocinados por empresas de softwares, e por fim vendidos.

domingo, 11 de agosto de 2013

O que é ser pai

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Em conversa superdescontraída, o professor e poeta César Borralho, primeiramente brinca com as respostas, mas depois incorpora o escritor ao falar do filho amado. Sobre a paternidade, César declara “pensei que nunca seria pai e agora já não sou apenas filho”. Pai de primeira viagem, César enfrenta os medos que envolvem esse ser pequenino. “Acompanhei o nascimento do meu filho pelo facebook”, falou César em meio a muitos risos, para depois emendar com “Sim, eu estava lá quando ele nasceu. Não chorei, não fiz nenhuma prece, só fiquei lá paradinho olhando pra ele, sentindo tudo o que acontece quando a gente se torna pai”, responde o pai emocionado. “A paternidade é uma majestosa oportunidade de doar ao seu outro o melhor de si e devolvê-lo mais pleno ao mundo”, declara, comovido, o escritor. Juliana Mello - Jornalista

JULIANA MELLO - Qual a sua reação quando descobriu que seria papai?
César Borralho - Num suspiro senti a magnitude da vida, senti a força da magia que me prospera, senti a alegria ladear qualquer tristeza como se fosse a tempestade aceitando a primavera. Nenhum grito, nenhuma palavra, só um breve silêncio de agradecimento à dádiva misteriosa do universo. Percebi que viriam os melhores dias da minha vida que eu imaginava já ter vivido. Senti o novo me esculpindo, empurrando as coisas de lugar e recriando o horizonte.

JULIANA MELLO - Acompanhou a gravidez da Lígia em todos os momentos? Participou do nascimento do Frederico?
César Borralho “... O tempo parou pra eu olhar para aquela barriga...”. Acompanhei a gestação de Frederico Almeida de Paula Borralho com imenso cuidado, certa tensão e prudente euforia. Não via a hora d’ele pular em nossos braços. Sim, eu estava lá quando ele nasceu. Filmei o parto e depois o segui sendo levado pelo hospital nos braços da enfermeira. Fiquei parado no berçário, extasiado diante de tão frágil e iluminante criatura. Não chorei, não fiz nenhuma prece, só fiquei lá paradinho olhando pra ele, sentindo tudo o que acontece quando a gente se torna pai. Só depois agradeci, tudo!

JULIANA MELLO - Como é a relação com o Frederico? Ele ainda é pequeno, você acompanha todos os passos dele? Como é o cuidado com o Frederico? Você divide com a Lígia as tarefas relacionadas ao Frederico?
César Borralho - Eu o pego nos braços e me sinto pleno e feliz. Eu lhe faço uns mimos e na maioria das vezes ele não está nem aí, mas quando sorri – eu ganhei o dia de novo! A alegria que ele me causa por existir só se explica pela alegria. Lígia é extremamente cuidadosa, atenta e tão zelosa com seus gestos e seus olhos de coruja que se eu fosse injusto diria que quase não tenho espaço, pois ela dá conta do recado tão bem que me comove. No primeiro mês de vida eu me incumbi de dar todos os banhinhos nele, o baninho gostoso do papai. Já troquei mais fraldinhas que agora, mas quase sempre eu o coloco em meu ombro para lançar para fora o excesso de ar (eructar) após a alimentação e em preciosa ocasião o coloco pra dormir em meu peito, como se eu pudesse protegê-lo para sempre de todo e qualquer perigo do mundo.

JULIANA MELLO - O que mudou na rotina com a chegada do Frederico na sua vida?
César Borralho - Qualquer coisa que eu diga será uma breve tentativa de afirmar que nossas mãos estão gratas e restritas aos cuidados com Frederico. Embora haja bastante trabalho, o cansaço adormece junto à sonolência angélica do nosso filho. As manifestações explodiram pelo Brasil à dentro e nem parecia que tinha uma guerra lá fora. Ele é a própria rotina, é nossa viola, a televisão.
JULIANA MELLO - O que espera do futuro em relação ao Frederico? Quais são os planos para a família?
César Borralho - Penso que Frederico se tornou o nosso plano de pequeno, médio e longo prazo e não concebo o amanhã sem tomá-lo como sinônimo. Tenho a impressão de que não tenho mais vida própria. Todos os meus esforços na vida serão na perspectiva de propiciar que ele seja o que quiser ser, seja lá o que ele escolher. Tenho duas sugestões bem distintas entre si que espero que lhes sirvam como balizas em seu caminho e que o ajudem a seguir:
- Cuide de suas finanças.
- Na falta de esperança siga o seu coração.
JULIANA MELLO - Em relação ao seu pai? Como era a relação entre vocês? O que você carrega consigo e pretende passar para a geração do Frederico?
César Borralho - Meu pai teve um pai bastante tradicional e eu recebi um pouco desta tradição. A gente filtra o que acredita e deixa de lado o que agora não corrobora com o que a gente pensa. Os tempos mudaram os costumes e hoje temos mais liberdade de opção. A herança mais cara que meu pai até hoje me doa é uma canoa simples e difícil de navegar: A Honestidade, a base do caráter de um homem refletida em tudo o que ele faz. Este denso espírito de integridade é a canoa que vou confiar a Frederico.

JULIANA MELLO - Em algumas palavras, o que você tem a dizer sobre a paternidade?

César Borralho - A palavra em questão me implica de imediato: pai/eternidade e Pai/Eternidade.  A imanência já não escapa à transcendência aos meus olhos. Nunca consegui ser ateu completamente e jamais consegui admitir convicto alguma religião. Contudo, pela primeira vez na vida eu acredito em Deus todo dia, todo dia, todo dia... e foi a paternidade que me aquiesceu pra essa eufonia. Exatamente no segundo domingo de agosto, Dia dos Pais, eu acumularei 34 anos de idade e a responsabilidade desta data já indaga por mim. Pensei que nunca seria pai e agora já não sou apenas filho. Eu queria ter algum dinheiro guardado para ficar em casa sossegado pelos próximos 4 anos e “brincar de vovô com meu filho no tapete da sala de estar”. É o que eu queria – no fundo. A paternidade é uma majestosa oportunidade de doar ao seu outro o melhor de si e devolvê-lo mais pleno ao mundo. 



Algumas informações:
Nome: Cesar Borralho*, 34.
* Professor por profissão, poeta por necessidade e boêmio por ocasião.

sábado, 10 de agosto de 2013

A s complexas relações culturais em São Luis

São Luís sempre teve uma relação ambígua com o Brasil. No século XVII se transformou na capital do Estado do Maranhão, em 1621, abrangendo os atuais estados nordestinos, exceção da Bahia e os atuais do Norte. Seu foco, atenção e desiderato sempre foi ser europeia, tal como Lisboa. Aliás, era com a capital portuguesa sua relação política e econômica, além de cultural. Era literalmente uma ilha dentro do estado, tanto que ao longo dos séculos XVII, XVIII e XIX foi conhecida como “ilha do Maranhão”, uma  “sinédoque cultural”: tomar a parte, São Luís, pelo todo, Maranhão. Sempre foi autocentrada, autorreferenciada, nunca se importou muito com o que acontece para além dos limites do Estreito dos Mosquitos.
 
Depois, a sanha de sua elite em querer ser europeia a cognominou equivocadamente de “Atenas Brasileira” em meados do XIX. Dois decênios depois, a sensação de nostalgia e decadência já rondava as bocas dos mesmos que a propalavam de Atenas, parte em função da débaclê econômica, parte, em decorrência da fuga das “inteligências” para o Rio de Janeiro. Seus grandes literatos participavam da construção da Academia Brasileira de Letras, da edificação do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, destilavam suas inteligências país e mundo afora. Para os que aqui ficaram a sensação era de abandono e vazio cultural. Abandono sim, vazio cultural, jamais.

Os tambores africanos sempre ecoaram na ilha, mesmo no período em que as elites tinham seus olhos voltados para o que acontecia do outro lado do Atlântico, ou mesmo na capital do império, Rio de Janeiro. A questão é que a cultura popular nunca foi foco e atenção ou mesmo elemento de compreensão de prática cultural, sempre marginalizada. Por isso, a elite ludovicense torceu o nariz quando a Beija-Flor, homenageando a cidade na Marques do Sapucaí, entrou com um enredo negro, africano. Como bem disse Josué Montello: “São Luís é uma cidade que dorme aos sons dos tambores”, hoje, cada vez menos. Somente a partir das décadas de 30 e 60 do século XX, já no governo Sarney, é que a cultura popular ganhou ares de interesse enquanto patrimonialização identitária e investimento público. 

A euforia do século XIX durou pouco tempo, embora ecoe até os dias de hoje como estandarte da identidade cultural da cidade, casos da Atenas Brasileira e da fundação francesa de São Luís. O passado é mais importante do que o futuro porque futuro não há. Além disso, o passado não toca a tangibilidade política, ou seja, como as coisas não aconteceram é sempre encapsulado como ideal, intocável, tradição, glória. A desgraça do futuro é um acidente que não aconteceu. É uma mera contingência, quando acontecer, se acontecer.

No início do século XX, já se falava em Vencidos e degenerados, livro de autoria de Nascimento Morais, uma bela análise das relações sociopolíticas de como as coisas funcionavam no Maranhão; herança perversa da escravidão e de como tal herança perpassava os padrões de sociabilidades densas, obtusas e pesadas. O Maranhão era a herança do massacre contra os balaios, a vitória da elite branca contra a africana. A derrota balaia foi o apanágio da destruição de um projeto civil e civilizacional distinto do que foi construído posteriormente; amorfo, racista, preconceituoso, excludente, visivelmente observado na tessitura urbana da cidade.

No início do século XX, uma primeira tentativa de apropriação da cultura negra. A Atenas cada vez mais distante era reeditada pela presença e marca únicas da herança africana; era a Black Athena, a Atenas revisitada com a incorporação da cultura popular na ordem do dia; basta ler a importante dissertação de mestrado de Antonio Evaldo Almeida, O Pantheon encantado: Culturas e Heranças Étnicas na Formação da identidade maranhense (1937-1965), sobre como a Igreja Católica, a imprensa e os intelectuais trouxeram a questão popular como instância herdeira do passado de glória, ou seja, a cultura popular era a própria encarnação da Atenas Brasileira.

A relação com o centro-sul continuava psicanalítica. Enquanto o Rio era a coqueluche nacional, São Paulo disparava contra a capital do Brasil com a Semana de Arte Moderna, em 1922. Foi um grito contra o provincianismo paulista e um elemento de disputa contra o Nordeste e Rio de Janeiro. O Maranhão, longe disso tudo, continuou reclamando da falta de emulação cultural.

Somente na década de 40 bradam os primeiros “ventos” do modernismo chegando ao Maranhão (controvérsia à parte) e o horizonte continuava sendo a reabilitação do cenário cultural de 100 anos atrás, ou seja, 1840. Era o início da nova fuga para o Rio de Janeiro de nossos poetas, jornalistas, como Ferreira Gullar, dentre outros, até aparecer o embate entre passadistas e modernistas, Centro Cultural Gonçalves Dias e Movelaria Guanabara, tendo este último grupo se constituído na plataforma política do grupo que futuramente seria cognominado de Oligarquia Sarney. Sarney, poeta e contista, ao vencer as eleições em 1966, levou para o escol político a geração que lhe granjeou a notoriedade intelectual e política.

Mas, o cenário cultural não se alterou. A década de 70 assistiu ao surgimento fantástico do grupo LABORARTE (Laboratório de Arte: teatro, dança, capoeira) e do movimento documentarista tendo como expoentes Murilo Santos e Euclides Neto, como forças estioladoras tentando romper o marasmo da cidade. Tudo era muito, muito difícil.

No final da década de 70 e início de 80, estoura a Gororoba, movimento artístico, os salões de pintura, a pungência da cultura popular através do tambor de crioula, apropriado por grupos que surgiam dia após dia, o carnaval de rua revitalizado, os festivais de canção, a nomenclatura MPM (Música Popular Maranhense), vários artistas, cantores, enfim, um movimento teatral, mas as coisas não ganham dimensões para além da ilha.

A década de 90 se notabiliza pela apropriação do reggae, revitalização do bairro da Praia Grande, pela tentativa de edição de livros de poesias de novos poetas, mas nada, nada ganha repercussão para além da ilha.

Nos anos 2000, continuaram a aparecer festivais de música, de teatro, pintura, artes plásticas, e a questão continua sendo a falta de continuidade e autonomia financeira, de autossustentação e dinâmica. Porque as coisas em São Luís não têm continuidade? Por que a cidade ricamente em cultura não é uma referência nem mesmo regional, se por todo o canto veem-se poetas, músicos, capoeiristas, dançarinos, artistas enfim, e se existe elemento de resistência e persistência em fazer do espaço público um lugar não apenas da circulação do capital, função axial da cidade na era industrial, mas de convivência da expressão da existência, da criatividade e da potencialidade humana? A resposta não é fácil e são várias as inflexões.

Uma questão é a economia. O Maranhão é o segundo estado mais pobre da federação, basta ver os vergonhosos índices do PNUD sobre os nossos IDH's. Os cinco municípios mais pobres do país são maranhenses.

Outra questão é a política. Exatamente pela pobreza econômica existe um mutualismo e uma relação de verdadeira submissão entre as instâncias econômicas e políticas. O estado é pouco industrializado, portanto, grosso modo, os salários são pagos pelos governos municipais (prefeituras) e governo do estado. Essa relação de dependência, além de estabelecer uma base de poder perversa, serve como elemento de controle social, de manutenção do status quo e do aparelhamento das instâncias e instituições que querem fazer alguma coisa.

O estado ainda mantem práticas oligárquicas desde o século XIX, mesmo com a derrota da Oligarquia Sarney, embora as bases deste poder remontam à década de 1940, assentada no grande poder dos senhores escravistas. O Maranhão é um misto da perversidade escravocrata, da relação de poder autoritária escravista e da promiscuidade do poder estatal controlando as instâncias republicanas. A bem da verdade, não há uma república no Maranhão, ou melhor, existe uma república a serviço da mentalidade escravocrata.

A oligarquia Sarney perpetuou essa prática mandatária escravocrata. O grupo Sarney ascendeu para derrotar a oligarquia vitorinista, sua antecessora; acabou perpetuando-a. É claro que ela não é a responsável por todas as mazelas do Maranhão, a cultura oligárquica e escravocrata presente até hoje é anterior a ela, mas aperfeiçoou os mecanismos de dominação, reeditou a inércia e o medo vitorinista, controlou as instâncias culturais impedindo que seus adversários promovessem um espaço de liberdade e criação artística, ainda controla parte do aparato jurídico, parte do Legislativo, parte do setor empresarial, as instituições midiáticas e se configura como um Leviatã, ou mesmo como um Argos, monstro de mil olhos a tudo vigiar.

Por outro lado, também acusar a oligarquia de ser a responsável por toda a mazela do estado virou uma espécie de salvo-conduto para os agentes e promotores da cultura não promoveram ou saírem do cerco fechado. Ela é grande parte responsável pelas mazelas do estado, mas é preciso ampliar a análise. As relações de compadrio apenas encontraram eco na oligarquia Sarney; a relação pessoalista, mandatária existe no estado desde o século XIX.

Ficar ou sair da cidade sempre foi um dilema para os promotores da cultura de São Luís. Sair e fazer a vida lá fora, ganhar o país, ficar conhecido nacionalmente ou ficar e ajudar a transformar o cenário da cidade é uma questão que perturba os que aqui vivem desde a década de 60 do século XIX.

São Luís sempre foi rica em diversidade cultural, não dá para nomear aqui o que está acontecendo nesse exato momento na cidade. O cantor e compositor Gilberto Gil certa vez disse que achava interessante o cenário cultural na cidade, autônomo, rico, autorreprodutor de suas bases e de diversificação. Isso continua acontecendo, acontece também que os produtores culturais também precisam sobreviver, terem amplitude, diversificarem o cenário e não conseguem nem mesmo articulação com outros agentes, e isso independe da política estatal, dentre outras coisas.

A política criou uma configuração perversa: a dependência do patrocínio, isso aconteceu no futebol, depois no carnaval de rua e agora se espraia pelo São João. 

Em Recife, na década de 90, não estava acontecendo nada, mas aconteceu o movimento mangue beat, tudo aconteceu. O problema é que em São Luís as coisas acontecem tanto quanto em Recife, Salvador, mas não têm repercussão, continuidade, fôlego e amplitude; se resumem aos seus feitores.

A cidade não tem praça, parque, shows gratuitos, atividades nas praias, e os eventos são méritos de seus realizadores, muitas das vezes nadando contra a corrente. O turismo na cidade é pífio, o Centro Histórico está caindo aos pedaços, não tem transporte público decente e eficiente, é suja, esburacada, transito caótico. A riqueza cultural dos bairros está se perdendo porque não existe promoção de eventos nesses espaços, quase sempre obrigando as pessoas ou a se deslocarem para o Centro Histórico decadente, e que não funciona aos domingos, ou a se deslocarem para a Lagoa da Jansen, os ricos, ou para a Litorânea, os que têm carros, caracterizando uma exclusão social.

O cenário cultural da cidade é tão medíocre, que a Biblioteca Pública Benedito Leite, a segunda mais antiga do país, ficou fechada por mais de dois anos, a Praça Deodoro, o coração da cidade, a mais importante, era até pouco tempo um lixo a céu aberto. Na cidade não existe um mercado editorial consistente, alguns poetas que se acham intelectuais se locupletam em cargos do governo municipal e estadual.

O cenário pulsante da cidade está em toda a parte, sobretudo na periferia. Lá, longe dos auspícios do governo, as pessoas se divertem, vivem, são felizes aos seus modos, muitas das vezes não podendo se deslocar para o centro da cidade porque o transporte público nas madrugadas é precário, além da violência dos assaltos.

Algumas ações poderiam ser realizadas na cidade, tais como: editar uma virada cultural na cidade em busca dos talentos perdidos e subterrâneos; promover um mercado ou possibilidades de publicação de autores sem recursos; incentivar o teatro amador; promover festivais de hip hop e debates sobre inclusão social; construir praças e logradouros com atividades aos finais de semana; criar espaços para exibição de grafitagem; oferecer cursos de cinema e de edição de vídeos com mídias de baixa resolução; promover festivais de música para todos os gêneros com recursos públicos; promover oficinas de escrita e leitura em praças públicas para todas as idades; promover um seminário criticando as Universidades sobre os seus isolamentos e falta de interlocução com a sociedade; construir bibliotecas em vários lugares; jardinar e plantar árvores na cidade; promover um fórum permanente sobre educação e cultura; reeditar obras raras e doá-las para bibliotecas nos bairros; transformar as escolas e Universidades em centros culturais; oferecer cursos de captação de recursos em editais federais e privados pelo país afora; transformar as secretarias de cultura municipal e estadual em órgãos colegiados com sessões e plenárias públicas mensais; recuperar o estaleiro escola e promover passeios de barco no entorno da ilha; ampliar os cursos de pintura em azulejo e recuperar os casarões do Centro Histórico; ampliar a mobilidade urbana com transporte público decente; construir ciclovias; transformar o Centro Histórico em espaço de moradia para servidores públicos, pessoas de baixa renda, bem como numa zona cultural e acadêmica; estimular a interação entre os bairros com um calendário anual das atividades desenvolvidas nestas zonas; Incentivar a frequência ao Cine-Praia Grande, um dos dois cinemas de arte da cidade, e não permitir o seu fechamento; construir salas de exibição de cinema de arte nas periferias; garantir a transparência, a lisura e aplicação dos investimentos e repasses públicos em todos os setores da atividade administrativa pública; estabelecer uma interlocução com o setor privado garantindo a aplicação da contrapartida dos seus investimentos em educação e cultura; implantar uma rede wi-fi de internet gratuita em espaços públicos.

           






Entrevista com Arton, de Sirius. Parte II

  Entrevista realizada no dia 14 de fevereiro de 2024, às 20:00, com duração de 1': 32'', gravada em um aparelho Motorola one zo...