Uma calça de linho folgada, daquelas que deixam as pernas
soltas, bambas, dispostas para o dois pra lá, dois pra cá. Foi escolhida
especialmente para aquela noite de alegria, de dança, de passos pesados pela
dimensão corporal, mas que revelava já um homem maduro, alegre, consciente de
seu papel como pai, avô, amigo.
A camisa era igualmente bonita, escondia a cicatriz de uma
cirurgia cardíaca cuja epiderme por sua vez escondia um aparelho por nome marcapasso
ajudando aquele grande coração a bater ao lado de três pontes de safena.
A calça também escondia outra cirurgia: a mesma que retirou
uma grande veia da perna para as pontes. Naquela noite, as únicas pontes que
importavam eram as que ligavam à dança, às companhias, à música, à alegria e à
certeza de uma vida feliz.
No mar, exatamente perto dele, sob o escopo da brisa e das
cadências das ondas que iam e vinham, os passos ritmados ali perto repetiam o
movimento da vida, cadentes, de um homem de 74 anos de idade; grande, afável,
falador, brincalhão, amigo, excelente pai e avô. O mesmo homem conhecedor das
histórias que o mar carrega, exatamente por possuir um grande arsenal de
histórias, algumas tão surreais quanto as dos pescadores. Assim era ele, um
grande contador de histórias por tê-las vivido tão bem.
Conheci Alberto Nunes Tugeiro em 1996 em sua grande
residência no Monte Castelo, Rua Raimundo Correia, a mesma rua que anos antes
eu frequentava quando aos domingos me congregava na Igreja do Evangelho
Quadrangular. Os caminhos de Raimundo Correia entrecruzando os meus, até hoje
pela veia e via literária.
Quando me olhou apresentando por Lúcia Tugeiro, sua filha,
minha namorada, fechou a cara obtusamente por conta de meus cabelos longos e
meu brinco na orelha esquerda. Ele nada entendeu. Mal sabia que por longos 17
anos aquele cabeludo de brinco na orelha esquerda seria seu genro, pai de duas
de suas netas e seu amigo por toda a vida.
Éramos parceiros no jogo de gamão, eu quase sempre o
vencia, meu aliado no garfo e na boa mesa, meu companheiro de jogos da Liga dos
Campeões da Europa, meu adversário de clube, ele Vasco, eu Flamengo, meu
debatedor sobre políitica, meu amigo, meu amigo.
Esse paraense, criado no Rio Grande do Sul, morador do Rio
de Janeiro, andarilho do mundo, trabalhador, gigante com quase 1,90 cm, 120 kg,
era portador de um coração incrível, porém frágil. Foi militar, contador,
bancário, medidor de obras, construtor civil, dono de restaurante. Foi de quase
tudo um pouco.
Chegou ao Maranhão na década de 60 e de lá pra cá nunca
parou de crescer e constituir amizades. Participou da fundação da SURCAP
(Serviço de Urbanização da Capital), da restauração do bairro da Praia Grande,
da criação do Aterro do Bacanga, da construção do Estádio do Castelão e de
várias obras importantes da construção civil maranhense. Era uma memória viva
da evolução urbana na cidade. Na época, eu, um estudante de História, me servi
de suas memórias para a confecção de minha monografia de conclusão de curso
exatamente sobre a evolução urbana de São Luís a partir da década de 60. Foram
horas e horas de entrevistas.
Esse grande homem era pai de Alberto Filho, Albertinho,
Elisabete, a bete, Lúcia, Ribamar e Paulo, o Paulinho. Avô de 13 netos, todos
absurdamente apaixonados por um avô engraçado, amigo, brincalhão e
extremamente companheiro. Tal paixão era desmedida quando se tratava dos
filhos. Todos tinham nele uma referência.
Esse homem grandão tinha pelo corpo as marcas da vida: uma
orelha cortada por um gravíssimo acidente de carro viajando a trabalho na
estrada sinuosa de curvas perigosas que levam a Imperatriz, onde residiu por
algum tempo. Era insistente e corajoso. Já safenado, foi de carro com seu filho
Ribamar dirigindo até Porto Velho. Ai de quem dissesse que ele não poderia
dirigir!!!!
Era um homem do mundo, conhecedor dos caminhos e percalços
da vida, sabedor, inclusive, que sua jornada estava chegando ao fim.
Há duas semanas, quando sua filha Lúcia comprou uma
passagem para ele ir ao Rio de Janeiro visitar sua filha Bete, seus netos
Juninho, Deco e Letícia e seu genro Bira, ele calmamente disparou: – “Filha, eu
não mais voltarei ao Rio, eu não estarei mais aqui”... Semana passada quando
almoçávamos juntos, ele me chamou em particular e me confidenciou: – “Henrique,
meu fim está próximo, não vou ficar muito mais tempo por aqui, minha morte se
aproxima”, de forma plácida, serena e tranquila. Olhei para ele seriamente, ele
me sorriu.
Eu o vi pela última vez no sábado, quando pela última vez
também almoçaríamos juntos. Fui buscar minhas filhas para passar o final de
semana. Como sempre, conversamos sobre futebol, como sempre, zombou do meu peso,
do tamanho do meu prato de comida, ele adorava fazer pilhéria sobre a minha
forma de comer. Levou minhas filhas até o meu carro, minha caçula Milene como
sempre brincou com ele; ele sorriu. Foi a última vez que o vi.
De madrugada meu telefone tocou, era Lúcia. Eu já sabia do que se tratava. Contou-me que
ele estava dançando com a calça de linho escolhida para aquele noite, a mesma
calça que escondia a cicatriz que retirou uma veia da perna, a que deixava as
pernas bambas para bailar, rodopiar no salão com sua grande amiga Fátima. Com a
mesma camisa bonita que escondia a longa cicatriz do peito, cuja epiderme
escondia o marcapasso. Após uma noite de piada, de alegria, depois de três
danças, o coração parou; o mesmo grande e generoso coração, porém, frágil.
Ele morreu dançando, sob a brisa do mar, embalado pelas
ondas que vão e vêm como uma dança de dois para lá e dois para cá. Driblou a
vida, dançou com ela, se despediu dançando.
Hoje, pela manhã, bem cedo contei para minha filha Lucía
sobre a partida do avô. Disse:
– Filha, seu avô viajou.
– De novo, pai...
– De novo, filha.
– Ele foi de carro?
– Não.
– Foi de ônibus?
– Não.
– Foi de táxi?
– Não.
– Foi de quê?
– Foi voando filha.
– E ele levou mala de roupa?
– Não.
– Meu Deus, meu avô sapeca tá sem roupa.
– Não se preocupa filha, teu avô agora se reencontrou com
sua avó Cidália, tá cercado de gente contando as histórias dele. E quanto às
roupas, ele sempre dá um jeito. Está vestido a caráter, como quem não veio
nessa vida a passeio, mas sempre dançou nos bailes da vida.