Frederico, meu filho.
A essa altura se estiveres lendo é porque teu tio Augusto
cumpriu a promessa de fazer chegar essa carta em tuas mãos. Estás dentro de um
ônibus “em busca de um sonho intranquilo”. A paisagem passa ao largo e as
janelas parecem uma tela de cinema em que tua vida é o roteiro. Talvez imagens
de infância, talvez do hoje, do ontem; a última trepada com Antonia; o quase
filho com Juliana; as brigas com Raimundo; teu nome sujo na praça por causa de
dívidas, culpa de Bernadete; a velha ribeira; os temores do agora e os do
porvir.
Estás numa estrada que ao final não sabes onde vai dar, é
para saber? Para que o controle da vida nas mãos?
O giro do motor ronca, a velha cidade que te viu crescer
vai ficando para trás. Anseio, medo e expectativas começam a dominar o teu
horizonte. Como sei disso... Bem, fiz isso a vida inteira, e cada vez era para
sempre. A terra toda era meu horizonte: a bagagem e uma vontade danada de
abraçar o mundo. Mas cada vez era para sempre, sem saber que para sempre,
sempre acaba, como diria Renato Russo.
A tua decisão é arriscada, ousada, perigosa, e o velho
poetinha dizia que são demais os perigos dessa vida, mas mais arriscado e
ousado é não ousar, não transgredir, nem romper as sendas e vendas que
obnubilam nossa visão. Viver é cheio de viver, a vida... Dentro dela tem mais
vida. E mais vida.
Eu não sei escrever como tu. Tenho por ti muita admiração.
Gostaria de escrever em verso, mas só arrisco as prosas. Acho que isso tem a ver
com a forma como vejo a vida; outrora como uma linha histórica em que quereria
eu pontuar os marcos lancinantes de minha vida, agora, como um roteiro de
cinema... Ah, cinema... Como sou frustrado por nunca ter escrito um roteiro.
Ah! Também tenho a frustração de não ser literato. Tento fazer de minha escrita
um tom de veleidade, mas quá... Não dá... Não é a mesma coisa.
Me levantei para pegar uma taça de vinho. É um vinho branco
chileno, uva sauvignon. Não gosto de vinho branco, acho porque penso ser
enófilo e enófilos como eu não gostam de vinhos brancos, consideram de menor
qualidade e não tão tradicionais, mas tem um português branco chamado...
Me esqueci. Acho que não gosto também porque vinhos brancos me lembram o
período de penúria em que eu e tua mãe passamos em Urubamba. Essa eu nunca te
contei. Como eram mais baratos que cerveja, quando eu e ela queríamos encher a
cara e esquecer a vida, comprávamos aqueles alemães liebrefraumeche (acho
que a grafia está errada, que em alemão quer dizer o beijo da mulher amada). Já
estudaste uma vez alemão e então deves saber que em alemão uma única palavra
pode significar uma frase inteira. Nunca te contei das penúrias de vinho em
Urubamba. Aliás, sobre muita coisa não conversamos.
E tu dentro desse ônibus pensando no que te espera. Vai meu
filho, pois que a sanha de qualquer retirante é a estrada, e o que seria das
estradas sem os retirantes. Nessas horas me lembro de Sêneca que dizia que
pensava com os pés.
Viver é bom, mas sonhar é melhor. Sou feliz, a noção de
felicidade é uma conotação que se dá para os sonhos que se idealizam e
supostamente se realizam. Realizar é importante, mas só se realiza se se
deseja. O desejo é impulso, a realização é morte. “Morre” em Maputo: ama, chora,
bebe, lê, realiza, deseja, deseja de novo, faz, porque o que é para sempre
nunca mais estará te esperando.
Quanto a futuro, o que te impede? Nada, a não ser tu mesmo.
És maior que tu mesmo. Olha para a estrada, porque a próxima parada não precisa
levar a
nada.
Nenhum comentário:
Postar um comentário