Não se afobe, não
Que nada é pra já
O amor não tem pressa
Ele pode esperar em silêncio
No fundo do armário
Na posta-restante
Milênios, milênios no ar
E quem sabe então
O Rio será
Alguma cidade submersa
Os historiadores - escafandristas virão
Explorar sua casa
Seu quarto, suas coisas
Sua alma, desvãos
Sábios em vão
Tentarão decifrar
O eco de antigas palavras
Fragmentos de cartas, poemas
Mentiras, retratos
Vestígios de estranha civilização
Não se afobe não
Que nada é pra já
Amores serão sempre amáveis
Futuros amantes, quiçá
Se amarão sem saber
Com o amor que um dia
Deixei pra você.
(Futuros amantes, Chico Buarque. 1993. Paratodos)
Imaginem a seguinte situação: num futuro inexato a cidade
de São Sebastião do Rio de Janeiro foi inundada por uma razão desconhecida.
Muito milênios depois mergulhadores de uma civilização que não teve contato com
o Brasil, muito menos com o estilo de vida dos moradores do Rio de Janeiro ou
de Niterói, exploram as profundezas no intuito de tentar entender o modo de
vida dos moradores destas cidades. Como não há sobreviventes, precisam tentar
recompor cenários a partir de fragmentos. Eles recolhem cartas, retratos,
armários, posta-restante e se perguntam quem eram aqueles moradores, como
pensavam, como se amavam, por que poetizam, como viviam, etc ?
Usei a música do cantor e compositor Chico Buarque como
analogia para tratar de algo tão caro aos historiadores: a tentativa de resgate
do passado. Assim como os sábios da canção em vão tentarão decifrar os ecos de
antigas palavras, fragmentos de cartas, é o ofício do historiador que utiliza
os documentos na tentativa de resgate de um modo de vida que se perdeu para
sempre. Os que os historiadores fazem é a partir da composição de documentos,
lançar perguntas ao passado, tentando recriar cenas e interpretar o estilo de
vida de nossos antepassados. Às vezes é em vão. A falta de documentos, de
esclarecimentos sobre o período, de compreensão sobre a época, mais nos afasta
do que nos aproxima do passado. Portanto, aquilo que se diz sobre o passado não
é a exatidão sobre ele, é uma aproximação, uma representação de como
possivelmente viveram os nossos ancestrais. Aproximação e representação que
pode ser refletida por todos aqueles que se debruçam sobre a difícil tarefa de
vasculhar o passado de qualquer civilização, cultura, povo, grupo étnico,
aglomeração humana, classe social, entre outros, distante ou próxima, ontem ou
hoje.
Para Eric Hobsbawn, historiador social inglês, a história
não pode resolver os problemas que a humanidade enfrentou no fim do milênio e
enfrenta neste início. A história não faz previsões e nem sabemos para onde
estamos indo. Só sabemos que a história nos trouxe até este ponto.
O tempo é elemento fundamental ao estudo da história.
Norbert Elias afirma: o tempo não se deixa ver, tocar, ouvir, saborear, nem
respirar como um odor. Mas, apesar de aparentemente abstrato, o tempo é uma
vivência concreta e se apresenta como categoria central da dinâmica da história.
A história trabalha com a sucessão linear de fatos e
simultaneidade social. O passado apresenta-se como vidro estilhaçado de um
vitral antes composto por inúmeras cores e partes. Buscar recompô-lo em sua
integridade é tarefa impossível. Buscar compreendê-lo através de análises dos
fragmentos é desafio possível de ser enfrentado. É função da história e da
memória tal tarefa.
Para Boaventura de Sousa Santos afirma que a função da
história e da memória é evitar que o ser humano perca referências fundamentais
à construção das identidades coletivas que ajudam o homem no
auto-reconhecimento como sujeito de sua história.
Para o poeta Poulet, graças à memória, o tempo não está
perdido, e se não está perdido, também o espaço não está.
Mas história e memória não são a mesma coisa.
Toda a consciência do passado está fundada na memória.
Através das lembranças recuperamos consciência dos acontecimentos anteriores,
distinguimos ontem e hoje e confirmamos que já vivemos um passado.
O ato de lembrar consiste em:
- reacender
e reviver sonhos e utopias;
- reconstruir
atmosferas de outros tempos;
- relembrar
hábitos, valores e práticas;
- reacender
emoções de diferentes naturezas individuais, sociais, políticas, culturais;
- relembrar convivências mútuas;
- representar
e reativar correntes de pensamento;
- reconstruir
climas de religiosidade, de lazer, de companheirismo, de lutas.
Memória é evocação do passado, estabelecimento de nexos,
afirmação de identidades, atualização do passado no presente, enquanto história é produção intelectual do saber, práxis interpretativa da realidade, reflexão sobre
si mesma, área do conhecimento sujeito à verificação, espaço institucional do
saber, produto social, conjunto organizado de produção de memória, narrativas
que se contrapõe ao efêmero.
Para Pierre Nora o criticismo da história destrói a
memória. No entanto, ambas são antídotos do esquecimento e também espaços de
poder, ser portador de um tipo de memória é ser senhor da história, conforme
Jacques Le Goff. A história tanto pode ser destruidora da memória quando
reguladora desta, quando retira o caráter espontâneo e a transforma em história
institucional, quando cientificiza a espontaneidade. Mas também a alimenta;
quando enriquece as representações possíveis da memória; fornece símbolos e
conceitos para que a sociedade pense sobre si mesma; recupera e difunde a
memória; reativa as lembranças através da narrativa.
História e memória se nutrem, mutuamente, ou como diria
Eric Hobsbawn: o ofício do historiador consiste em lembrar às pessoas aquilo
que elas já esqueceram.