Noite agitada, pulsante, transeuntes, música, agitação,
gente, muita gente, carro, barulho. No traço arquitetônico de um Rio de Janeiro
ainda colonial, hoje bairro boêmio da Lapa, todas as últimas quintas-feiras de
cada mês, sempre à noite, acontecem o encontro de batuques da África, uma
celebração de nosso passado não muito distante, marcado pelos embates da
escravidão.
Turistas nacionais e estrangeiros
são atraídos pela força da evocação dos três tambores e pelo pulsar
da dança. Em meio à uma arquitetura cada vez mais soft, convivendo com o passado
colonial, exatamente embaixo dos arcos da Lapa, antigo aqueduto da região,
passagem hoje para o bairro de Santa Teresa através do bondinho, os três
tambores, ou do Tambor-de-Crioula, ou do Jongo, também cognominado de Caxambu,
existe um caráter de uma sociabilidade que teima em resistir e não
morrer.
Antiga prática escrava, quer o Tambor-de-Crioula, originado
no Maranhão, quer o Jongo ou Caxambu, região do vale do Paraíba, ambas as
danças são coirmãs, diferença pontuada pela presença masculina no caso do
Jongo. Ambas celebram a fertilidade da terra, a espiritualidade africana
radicada no Brasil, a vida, o amor, a alegria, ritmada pelos tambores.
Num mundo em que a individualidade dá o tom dos novos
padrões de sociabilidade, as brincadeiras de roda, simbolizando o elo entre as
pessoas, perdem o espaço, o padrão de consumo é o cartão de visita como
elemento de persuasão e atração sensível, os códigos sociais de ilação nas
cidades se esfalecem, elementos como o Jongo e o Tambor-de-Crioula em pleno
centro cultural e boêmio do Rio de Janeiro tem muito a nos dizer.
As danças são aglutinadoras, não excludentes. Não é preciso
ter dinheiro para dançar, nem ser feio, nem bonito, apenas ser gente, sensível,
entrar no espírito da dança e se deixar levar por uma atmosfera cada vez mais
distante: a da relação entre homem-mulher-natureza.
Não à-toa que o ritmo cadenciado repete as batidas do
coração, e o corpo não consegue ficar parado. É bem verdade que muita gente
passa ao largo indiferente ao que está acontecendo, em busca de outras formas
de sociabilidade, prazer, aglutinação, mas os que ali se quedam maravilhado com
essa antiga prática escrava, rememoram um tempo não muito distante de que a
dança era uma das poucas formas de integridade física e espiritual
exercida pela luta pelos escravos, logo, era uma forma de resistência.
Resistência hoje repetida pelos que ali brincam, dançam,
celebram nos dias de hoje, quintas-feiras, embaixo dos arcos da Lapa. A
escravidão acabou, a opressão não.
Festas, segundo Bakhtin, são uma das formas de
incorporação, exclusão e/ou inclusão/exclusão ao mesmo tempo, ou seja, nas
festas existe uma representação das categorias de classe existente nas
sociedades muito bem estandartizadas nas roupas, modos e locais de
participação. Vide exemplos como: quadrilhas, carnaval, micaretas, etc. Nessas
manifestações, as categorias sociais estão muito bem divididas. No entanto, as
festão também são formas de subversão, vide, de novo, o caso do carnaval: homem
se veste de mulher, rico de pobre, pobre de rico.
Há festas que são a própria concepção da
inclusão, Tambor-de-Crioula e Jongo são dentre outras, exemplos. Qualquer um
pode se aproximar, ouvir, dançar e sobretudo, dançar. – Mas eu não sei dançar jongo? Basta respeitar o momento certo de
entrar; quando um outro casal ou parceiro se despede, ou, quando gentilmente o
convida para dar a vez. É democrático, é cadenciado.
Abra os braços, no caso do jongo, convide uma parceira, não
dispute com ela, seja cortês, acompanhe seus movimentos, se aproxime e se
distancie respeitando a sonoridade-espiritualidade dos tambores. Pronto. A vida
está ali sendo celebrada, pois que é feliz, extremamente feliz.
Quando vejo rodas de Tambor-de-Crioula e de Jongo, dentre
outras manifestações, eu me sinto renovado. O mundo é cada vez mais dissociado,
mas existem formas de resistências. Os antigos escravos resistiram. Eles
venceram... Hoje, re-ritualizamos suas antigas práticas.
A vida é mais. Celebremos a vida.
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