terça-feira, 26 de junho de 2012

ser latinoamericano

Os episódios que culminaram no impeachment do presidente do Paraguai, Fernando Lugo, revelam uma face sangrenta da política na América Latina. Não é de hoje a relação tumultuada entre democracia e instabilidade política na região. Do México à Argentina, a América Latina sempre foi palco de lutas sangrentas, golpes, instabilidade regimental, ditaduras, e muita pobreza. 

Eduardo Galeano, escritor uruguaio, dono de uma vasta crônica sobre a relação entre literatura e politica, falecido recentemente, no seu célebre livro disparava: México, tão longe de Deus, tão perto dos E.U.A, (frase do presidente mexicano Lázaro Cárdenas - 1934-1940), referindo-se ao processo culminante da tomada dos territórios mexicanos do Texas, Novo México e Califórnia pela grande potência. Afora a perda territorial, foram-se também importantes minas de ouro. No século XX, o México adentrou numa revolução, a zapatista, depois, foi comandado por um Partido que ficou no poder entre 1929 até os anos 2000, O PRI (curiosamente, Partido Revolucionário Institucional) e hoje o país está mergulhado na guerra dos cartéis de drogas e de tráfego humano.

Cuba, a ilha de Fidel, quando conquistou sua independência em relação à Espanha, pagou caro com a concessão de Guantânamo como base militar estadunidense. Não chamo americanos pois que americanos somos todos nós que moramos neste continente. A música Guantanamera é uma homenagem à mulher de Guantánamo: brava, resistente, lutadora. Curiosamente, os maiores boxeadores cubanos saíram de lá.
  
José Marti, mártir da luta política no continente, ideólogo do panamericanismo, quando morava nos E.U.A alertou sobre o nascimento do grande império e da necessidade de uma unificação política na região com vistas ao eminente perigo que morava ao lado. Ele e Simon Bolívar não foram ouvidos, logo depois nasciam o Destino Manifesto, a Doutrina Monroe, o Corolário Polk e o Big Stick (América para os americanos, política de defesa militar da região sobre o pretexto da influência europeia). Resultado: Os E.U.A ocuparam o Panamá, tomaram conta do canal, ocuparam Porto Rico (o grupo Calle 13 Latinoamerica defende a independência desse país).  

Depois, veio a política de segurança da região sobre o pretexto de não proliferação do não-comunismo na região. A grande questão era a expansão do grande capital monopolista na região. Essa política resultou numa série de erupções de ditaduras militares na região: Brasil, Uruguai, Argentina, Paraguai e Chile. 

No entanto, os E.U.A não são os únicos responsáveis pelos problemas políticos na região. A multiplicidade de repúblicas autônomas durante o processo de independência no século XIX, ao invés de uma região unificada como queriam José Marti e Simom Bolivar, denotam o particularismo de cada lugar, a forma como os mandatários locais, depois caudilhos, segmentaram qualquer possibilidade de aliança política, tornando-se mandatários de suas regiões, sempre com vistas ao interesse e sob a intervenção de grandes potencias e do grande capital? 

A guinada para a esquerda: Lula (Brasil), Evo Morales (Bolívia), Hugo Chávez (Venezuela), Nestor Kirchner (Argentina), Michele Bachelet (Chile), Rafael Correa (Equador), além da aproximação política com Cuba, caso especial de Hugo Chávez, não foi nem de perto bem vista pelos Estados Unidos e pelo restante do bloco capitalista. A região sempre foi apanágio de grandes potências, primeiro da Inglaterra que interveio na independência e depois participou ativamente das decisões das repúblicas e do império brasileiro ao longo do século XIX, tendo inclusive influenciado na Guerra do Paraguai, sem esquecer da participação inglesa na Guerra do Pacífico entre Peru, Bolívia e Chile, na guerra do Chaco (entre Bolívia e Paraguai), e nas intervenções políticas em vários países do continente, depois, dos próprios E.U.A, que promoveram o bloqueio continental a Cuba, hoje em vias de desaparecimento do embargo.

Sem adentrar na tentativa de golpe contra Hugo Chavez (documentário: a revolução não será televisionada), nem das nacionalizações de empresas privadas na Bolívia por Evo Morales, muito menos na política de combate às drogas na Colômbia patrocinada pelos Estados Unidos, no entanto, o episódio recente do impeachment do presidente do Paraguai é para lá de lamentável, e só revela nossa fragilidade, tanto interna, quanto externa. 

Ser latinoamericano é estar à mercê de uma política instável? Será um traço nosso? Não. As raízes disso estão nos nossos processos coloniais, na formação de nossas identidades e nos projetos de nação que nasceram pós-independência, e permanecem até hoje. 

A primeira crítica recai ao Brasil. Sempre foi imperialista, sempre. Primeiro, ocupando o Uruguai, depois, participando do massacre ao Paraguai, em seguida, anexando o Acre, comprando da Bolívia, e hoje exercendo um imperialismo econômico, via Mercosul, às economias da região e a alguns países da África. No Uruguai, Argentina, Peru há prevalência de carros, fogões e geladeiras brasileiras, além de postos de gasolina da Petrobras dominando o cenário. A desproporção econômica entre o Brasil e as demais nações é gritante.

Mas o fato é que nunca nos sentimos latinoamericanos, nunca. Isso nasceu no XIX antes mesmo da independência. É verdade que somos os únicos a falar português, como também sempre estivemos de costas para o continente. A classe média brasileira prefere passear em Miami que visitar a Bolívia, Peru, ou qualquer país da região. Chegamos ao cúmulo de chamar os outros países de latinoamericanos, como se não tivéssemos nada a ver com isso.  

O que nos unifica? O passado histórico colonial, a origem luso-espanhola, a exploração, a pobreza. Há pelo menos três definições sobre o que identifica a América Latina. a) Países de origem luso-espanhola, ou seja, colonizados por Portugal, Espanha, acrescentando os de origem holandesa, francesa e inglesa. b) Países do continente, grosso modo, do México à Argentina. c) Uma definição geocultural, ou seja, aqueles de origem latina e caribenha que tiveram suas origens étnicas em populações ameríndias e acrescidas do contingente africano.

O episódio recente do impeachment do presidente paraguaio Fernando Lugo revela a falta de articulação política. Independentemente da qualidade dele, ninguém pode ser retirado do cargo numa operação que durou apenas 36 horas, feito a toque de caixa, sem que nenhum país do continente desse conta disso. Dá a impressão que é normal neste continente a instabilidade democrática, que tudo aqui não possui o estatuto do estado democrático de direito, que os interesses internacionais sobrepujam aos nacionais, afinal, fazendeiros, agropecuaristas, industriais apoiaram o golpe do impeachment. 


Eu guardo uma cena linda quando estava no aeroporto de Lima, vestido com uma camisa vermelha escrita Peru no saguão esperando meu vôo de volta ao Brasil, quando um grupo de mais ou menos 100 argentinos, acompanhados de violão, sentaram no chão e começaram a cantar Mercedes Sosa:

Sólo le pido a Dios
Que el dolor no me sea indiferente,
Que la reseca muerte no me encuentre
Vacío y solo sin haber hecho lo suficiente.
Sólo le pido a Dios
Que lo injusto no me sea indiferente,
Que no me abofeteen la otra mejilla
Después que una garra me arañó esta suerte.
Sólo le pido a Dios
Que la guerra no me sea indiferente,
Es un monstruo grande y pisa fuerte
Toda la pobre inocencia de la gente.
Sólo le pido a Dios
Que el engaño no me sea indiferente
Si un traidor puede más que unos cuantos,
Que esos cuantos no lo olviden fácilmente.
Sólo le pido a Dios
Que el futuro no me sea indiferente,
Desahuciado está el que tiene que marchar
A vivir una cultura diferente
Eu senti vontade de me juntar a eles, mas estava do outro lado do saguão. Foi emocionante. Encerro com um desejo de José Marti:


Canción Por La Unidad Latinoamericana

Pablo Milanés

El nacimiento de un mundo se aplazó por un momento
un breve lapso del tiempo, del universo un segundo.
Sin embargo parecía que todo se iba a acabar
con la distancia mortal que separó nuestra vidas.
Realizaron la labor de desunir nuestras manos
y a pesar de ser hermanos nos miramos con temor.
Cuando pasaron los años se acumularon rencores,
se olvidaron los amores, parecíamos extraños.
Qué distancia tan sufrida, que mundo tan separado
jamás hubiera encontrado sin aportar nuevas vidas.
Esclavo por una parte, servil criado por la otra,
es lo primero que nota el último en desatarse.
Explotando esta misión de verlo todo tan claro
un día se vio liberal por esta revolución.
Esto no fue un buen ejemplo para otros por liberar,
la nueva labor fue aislar bloqueando toda experiencia.
Lo que brilla con luz propia nadie lo puede apagar,
su brillo puede alcanzar la oscuridad de otras costas.
Qué pagará este pesar del tiempo que se perdió.
de las vidas que costó, de las que puede costar.
Lo pagará la unidad de los pueblos en cuestión,
y al que niegue esta razón la historia condenará.
La historia lleva su carro y a muchos nos montará,
por encima pasará de aquel que quiera negarlo.
Bolívar lanzó una estrella que junto a Martí brilló,
Fidel la dignificó para andar por estas tierras.
Bolívar lanzó una estrella que junto a Martí brilló,
Fidel la dignificó para andar por estas tierras.

   

domingo, 24 de junho de 2012

espaço urbano, memória e sociabilidade

Eram tempos felizes aqueles. Tempos de infância, ingenuidade e muita traquinagem. Depois do colégio, primeiro, o Instituto Senhor do Bonfim, depois, o Freitas Figueiredo, o almoço, logo em seguida, brincar de ser motorista e passageiro com um aro feito de pneu de carro tendo por condutor, Daniel, filho de seu Juca e Dona Vitória. Era a primeira brincadeira porque começava às 13:00 h, sol forte na moleira. Depois, comandado por Darlan, jogo de botão, esfrega porcelana na calçada para ilustrar os grandes jogadores. Meu time sempre perdia, nunca fui hábil. Em seguida, a boa e divina bola, às vezes na rua, ralávamos muito no asfalto, às vezes no CSU da Cohab, no campinho, espaço nosso onde nossa trupe cresceu junta, grande espaço de lazer.

Nosso time de futebol era a Portuguesa, equipagem comprada pela Dona Antônia, já falecida, mãe de Kekê. Os números foram bordados pela avô de Lúcio, dona Irene, também falecida, juntamente com sua filha, Dona Vitória. Eram zelosas conosco, cuidavam da gente. Eu era zagueiro. Foi com Lúcio que peguei a minha primeira e última pisa de Currupira.

Certo dia, meu pai disse para eu não ir caçar no mato. Mato se entende hoje os bairros do Cohatrac e Planaltos. Eu “odeio” (risos) esses bairros, afinal, “eles” destruíram a mata em que nos brincávamos. Vimos esses bairros nascerem.

Esperei que meu pai dormisse, peguei a baladeira (estilingue) pendurada na rede, cortei a vasilha de plástico de água sanitária no topo, amarrei na cintura, enchi de pedra e mamona e fui bater na casa de Lúcio para caçar passarinho. A Rua 8 era o istmo que separava o último espaço urbano entre a Cohab e a Maioba, entre esses, uma imensa mancha verde. Lúcio acertou e matou um anum, errou um rouxinol. Era a minha vez. Mirei num chico-preto, foi quando ouvimos a mata quebrar, passos largos e rápidos em nossa direção, bem próximo de nós avistei os pés para trás, gritei: Currupira!!!!!! E perna-pra-que-te-quero, deixando tudo. Quando chegamos ao asfalto, nossas pernas estavam todas ensaguentadas, fruto dos espinhos de tucum que cruzamos sem darmos conta. Nunca mais cacei passarinho, odeio vê-los em gaiola.

Uma de nossas outras diversões era banhar no Rio Itapiracó: límpido, águas cristalinas, cercado de muito verde, calmaria, paz. Levávamos quase meio dia para chegarmos a ele. Na volta para casa, cortávamos toras de bambu para fazer armação de papagaio (pipa), havia uma quantidade imensa de bambu. Soube que o Rio Itapiracó virou esgoto. Recuso-me a voltar lá. Não quero ver.

Raras vezes íamos ao matagal no Terceiro Conjunto onde hoje é a ocupação Isabel Cafeteira, para brincarmos de polícia e ladrão. Tudo aquilo ali hoje está ocupado.

A Cohab começou ser construída em 1968, dentro do plano de expansão do antigo BNH e do processo de expansão urbana da cidade com a criação das avenidas Jerônimo de Albuquerque, Franceses, Portugueses, Daniel de La Touche, Africanos e Holandeses, eixos condutores da cidade.

Precisamente na Cohab, cuja Avenida Jerônimo de Albuquerque passa, havia uma ramificação do Rio Anil: grande e extenso, hoje, completamente desaparecido, soterrado.

O IV Conjunto, o último a ser construído, bairro onde me criei, é de 1973-1974. Minha rua, a 17, meus pais foram os primeiros moradores e permanecem lá até hoje. Dessa rua eu vi o mundo, primeiro através das brincadeiras, depois, subindo no telhado de minha casa.

Por ser um bairro muito distante, hoje não mais, a noção de referência muda, existem bairros hoje mais afastados do centro; minha trupe só saía para coisas que o bairro não possuía; como hospitais, cinemas e congêneres, de resto, a noção de brincadeira era impensada fora de nossos domínios. Nosso bairro era nosso mundo.

Ali, brincávamos de chutar lata, explodir lata de alumínio com bombas de morrão, cola-bandeira, jogar pedra nas casas alheias, tocar campainha e sair correndo, empinar papagaio (pipa), fazer cerol para lancear, dar sacalão, correr atrás de papagaio de compasso, borboleta, bola, roubar carretel de linha, empinar curica, cair no poço. Cair no poço era uma forma muita ingênua de beijar as garotas, da qual não trago boas recordações. Eu era o mais jovem, menor e feio dos meninos. Depois de muito tempo, saquei por que as meninas na minha vez sempre pediam abraços e beijos no rosto, nunca salada mista – beijo na boca. Quem apertava os olhos de quem iria beijar o garoto nunca pressionava, indicando ser alguém desinteressante. Otávio, Paulinho, Lúcio, levavam todas. Tempos depois, talvez por pena, quem primeiro me beijou foi Nenê. Nunca esqueci aquele beijo.

Tudo entre nós girava em torno do nosso bairro: festas, lazer, comemorações, até o ano de 1985, quando algo começou a mudar entre a gente. Esse ano marca a inauguração do Shopping Tropical, no bairro do Renascença. Eu tinha exatos 11 anos. Até aquele momento vestíamos roupas de domingo para ir à missa ou nos preparávamos para as festas. Havia uma competição ingênua para exibição da basqueteira (hoje tênis), a calça e camisa novas.

A partir daquele ano, começamos a nos vestir para apreciarmos as vitrines, passearmos pelo shopping, sem comprar nada, obviamente, eram todos muitos pobres. Esse ritual começou a ficar cada vez mais frequente, e a Cohab começou a ficar pequena para nós. Nosso espaço de sociabilidade começou a mudar, afinal, era um longo trajeto entre a Cohab e o Renascença, e víamos paulatinamente as transformações urbanas na cidade; perdemos a ingenuidade, a infância, queríamos ser adultos-infantis, começamos a querer consumir.

As brincadeiras pueris perderam o sentido. Deixamos de lado o carrinho de rolemã, patinete, o andador de lata (duas latas ligadas por um fio), a roda de pneu imitando um ônibus, as bombas de morrão, a camisa descoarada da portuguesa, o cancão desenhado no asfalto, as baladeiras com mamonas pra caçar, o Rio Itapiracó, correr de bicicleta, nem todo mundo tinha, então até a cargueira do Sr. Machado entrava na roda, jogar bola no colégio Geraldo Melo, dançar na quadrilha do Joca – a Princesinha da 13 –, ouvir as batidas ritmadas do bloco tradicional Os Vigaristas, de Sr. Valterlino, pegar suquinho fiado na casa de Dona Irene, ir às festas na casa de dona Nicinha, subir no telhado de zinco do ginásio do CSU, disputar campeonato de futebol, jogar vôlei, brigar entre a gente como rito de passagem e demonstração de dureza. Eu sempre apanhava, era o mais fraco.

Nunca vou me esquecer quando minha mãe sempre pegava na minha cabeça para saber se estava quente de sol, se estivesse, era sinal que havia desobedecido à ordem dela de não sair, além da célebre frase: “se apanhar na rua, vai apanhar em casa também”. Eu apanhava duas vezes. Meu amigo Kekê sempre me batia. Hoje dou risada: tenho 1,83 de altura, 107 kg, ele ficou um pirralho. Risos.     

A cidade ficou maior que a Cohab. Hoje entendo o que Piaget afirmou quando disse que a percepção de tempo entre o zero e os quinze anos é maior do que entre os quinze e os trinta, embora cronologicamente sejam o mesmo período. A diferença é a noção de tempo. Nos anos iniciais não há passado e futuro, somente presente, nos anos posteriores sabemos o que vivemos, o que temos para viver, por isso, a ansiedade é maior, por conseguinte, a percepção de que o tempo passa mais depressa.

Hoje, todos crescemos. Alguns se casaram, descasaram, tiveram filhos, foram embora, seguiram seus rumos, amadurecemos, nos perdemos de vista. Alguns poucos ainda moram por ali. Sempre revejo alguns quando visito meus pais. Tempos felizes.

Com o risco de esquecer nomes, por vezes sentado na porta dos meus pais me lembro da cena de todos sentados na calçada de Dona Irene tentando decifrar mímicas: Dalbequis, André, Jacqueline, Fernando, Otávio, Felipe, Luis, Eron, Diquinho, Fernanda, Daniel, Ligia e Regina, Darlan, Nenê, Dadá e Shirley, Nickson, Nilson, Ruthane e Rúbia, Lúcio e Rogério, Cinthia, Gibson, Kekê, Samia e Nega, Miúda, Cristina, Paulinho e Fabinho, Denilson. Além dos vizinhos da Rua 13, Avenida 03 e Ruas 16 e 15: George e Urbano, Glauber, Cacau, Alan, Fabrício, Cabeça, além da moçada mais velha: Douglas, Pininho, François, Kennedy, Edinho, Sérgio, Nato, Wellington, Wenner, Nerino e Zé Raimundo, Gari, e meu amado irmão Homell, que me batizou pela alcunha de “Caga-pau”, ou seja, cagueta. Sou flamenguista e canhoto por causa dele. Eu era destro, mas ele me ensinou Karatê e a chutar com a perna esquerda. Sou destro na escrita e canhoto na perna.    

Depois veio a segunda geração, mais nova, já com outras brincadeiras: Preá, Felipe, Luiz Fernando, Fernando, Alan e Júnior, Pimpolho, Marcelo, Marrame.

Definitivamente, o mundo passou a ser a nossa casa, a Cohab deixou de ser o nosso planeta para ser o lugar de nossa infância.                              


sexta-feira, 22 de junho de 2012

velho, meu querido velho

 Sentado na cadeira de balançar todas as tardes com sua “veia”, como costuma chamar sua esposa, sempre na porta de casa – uma antiga prática remanescente dos moradores de bairros em São Luís –, um senhor de 85 anos contempla a vida passar a sua frente.

Esse senhor de estatura mediana, pele alva, já marcada por manchas de sol, sereno, plácido, sábio, não passa pela vida incólume, marcou muitos por onde passou, mas, sobretudo, sua família; para esta, a maior referência de ser humano.

Trabalhou desde pequeno no então terreiro do Vinhais, Vinhais velho, lote de terra que pertencia a seu pai. Continuou trabalhando até atingir a aposentadoria compulsória, forçada a contragosto. Foi tratorista, motorista no antigo fomento, antiga fortificação colonial existente até hoje no bairro do Diamante, antes de ter passado pelo município de Codó, interior do Maranhão. Trabalho sempre foi seu lema, quer no emprego público, quer em casa, sempre burilando algo para fazer, mexe daqui, arruma dali, reforma a casa, pega em ferramenta, nunca, nunca parava. Subia no telhado, o mesmo que uma criança passou boa parte de sua infância contemplando o céu e pensando sobre o que era a vida. 

Sempre foi o mais querido da família, o centro, pois mesmo sendo lacônico, e exatamente por isso, quando falava, todos se calavam para ouvir. Sempre foi a referência de moralidade, de caráter, de boa gente, de humildade, bondade, temperança, paciência, sabedoria, talvez a palavra que melhor o defina. 

Hoje, esse senhor de 85 anos, combalido pela vida, acometido por um AVC (acidente vascular cerebral), faz fisioterapia todas as manhãs de quinta-feira no hospital de referência de recuperação do aparelho locomotor, Sarah Kubitschek, excelente por sinal, e que por sinal também deveria ser ampliado para todas as capitais, ainda mais equipado, o que só mostra o descaso com a saúde pública no Brasil.

Não lamento o estado em que ele se encontra. Soube do AVC quando estava em Salamanca, na Espanha, em 2009. Atônito, perdido, desesperado, fui amparado pelos amigos e colegas de Departamento sem saber o que fazer, e eles foram fundamentais para meu controle, afinal, o Atlântico nos separava, e a vida passou como um filme na minha frente.

Foi ali que a vida tomou uma nova direção, passei a valorizá-la em cada minúcia, detalhe, somente pelo fato de imaginar que jamais o veria. Tudo passou a ter mais sentido, fiquei com medo de passar pela vida e não sorvê-la intensamente.

Todas as quintas-feiras levo esse senhor, meu pai, com uma das minhas irmãs para a fisioterapia, ou Margô ou Nel, e lá me deparo com gente de toda ordem de tratamento, idade e condições: crianças, jovens e adultos no afã e desiderato de retomarem suas vidas, ou construírem outras. 

É tocante ver aquela gente se esforçando ao lado dos parentes, não desistindo, lutando, acreditando, esperando. O lugar é belíssimo em todos os sentidos, não só por sua localização geográfica: as margens do rio Anil, ventilado, com o mangue por visão, como também por ser um lugar de vida, apesar dos traumas. É sempre emocionante compartilhar as histórias, renovar a esperança, olhar os nossos buracos e traumas de outra forma, enxergar a beleza, apesar das dificuldades. Ali é um lugar de renovação, do recomeçar, de olhar para as feridas e se perguntar como essas podem ensinar a (re)valorizar algo possivelmente perdido. Definitivamente é um lugar de esperança.

Assim, olho meu pai sendo muitíssimo bem cuidado pela dedicação e competência de toda a equipe, e em especial, da fisioterapeuta Luciana Nolasco Macedo: paciente, educada, atenciosa, precisa e estimuladora. Faltam adjetivos para sua dedicação. É tocante. Fico sentado durante as duas horas de fisioterapia vendo o esforço de meu velho, o mesmo que teve a vida inteira. Vejo o brilho e garra nos seus olhos, a relutância em não se entregar, e ele sem saber continua a me ensinar. 

Vejo um filme passar na minha frente, desde minha tenra idade, quando no telhado da minha casa imaginava mundos distantes, e às vezes ele subia para consertar alguma telha, arrumar a antena e me perguntar o que fazia ali. Ele sempre me entendia no seu silêncio. 

Do meu pai guardo o que melhor a vida pôde dar: amor, dedicação, cumplicidade, compaixão, paciência, ternura. Jamais me bateu, jamais gritou, embora seu olhar lancinante cortasse mais que navalha. Preferia mil vezes apanhar de minha mãe; minha venerada, idolatrada e amada negra, gorda, pulsante, tão visceral quanto eu, tão escorpiana quanto, qual herdei o gosto musical, a vontade de correr mundo e o gosto pela vida, que apanhar de meu pai. No fundo, meus pais se completam, um não vive sem o outro, e lá se vão 60 anos de casamento. É o que se chama de simbiose.

De suas histórias cresci ouvindo sobre sua infância nas “morrarias”, hoje chamam de Lençóis Maranhenses, das cachaças, da valentia de seu amigo que de forma intrépida, primeiro bebia, depois escolhia alguém no bar para pagar a conta, de como se perdeu na pequena e bucólica Primeira Cruz, lugar que eu fiz questão de conhecer. É difícil selecionar qual história mais me marca, a vida dele é a grande história.

Certa vez, nas tantas festas que rondavam minha casa, cresci com barulho, muita gente, família grande, música, meus tios no violão, às vezes minha mãe cantando e tocando, ele começou a assobiar Carolina. Aliás, ele sempre cantarolava Carolina. Já na faculdade, um belo dia bebendo no Bambu Bar, eu ouvi Carolina na vitrola. Despertei-me. Peguei um disco de capa vermelha e dei conta de um cantor chamado Chico Buarque. A data da música: 1969. Ao voltar para casa, comentei com meu velho que ouvira Carolina e que era de Chico Buarque. Ele petardou: “Impossível, Carolina é de minha infância”, cresci ouvindo essa música. Somente depois de mostrar-lhe a data do disco, ele se apascentou, como sábio, ficou calado, pensativo. Mal ele sabia como aquela possível contradição marcara minha vida.

Certo dia, ministrando aula no interior do Maranhão sobre teorias da história, disciplina da minha vida, comecei a explanar acerca da relação entre história e memória. Foi aí que me dei conta de por que papai confundira Carolina com sua infância. História não é memória, é a formalização desta, organização, didatização, criação de sentido e ordem. Memória é espontânea, seletiva, subjetiva, as pessoas refazem e reconstroem suas memórias a partir de seus crivos. Para ele, Carolina representava um tempo feliz, felicidade para ele, num tempo longínquo era a infância, a partir daí passei a encarar a história e a memória de outra forma.

De outra forma também vejo-o hoje no hospital Sarah todas as quintas-feiras, não com tristeza melancólica, e sim com amor de filho pelo pai, exatamente o homem que mais marcou minha vida e de meus irmãos e irmãs. Vejo-o com os cuidados que devemos ter, afinal, dedicou a vida inteira à mulher, sua “veia”, e aos filhos com esmero, dedicação e profundo amor.

Ele faz todos os exercícios, a fisioterapeuta Luciana o elogia dizendo que é um aluno aplicado, às vezes faz mais do que deveria, mas nunca reclama de nada, incansável, lutador, guerreiro, como sempre foi.

Não sei o que fiz para merecer meus pais, irmãos e irmãs, dizem que a gente escolhe a família antes de nascer, então escolhi bem. Escolhi por pai um homem integro do qual me orgulho e me envergonho de não ser nem 10 por cento do que ele é, e nunca serei, já me acostumo com essa ideia.

Quando chego ao Sarah, gostaria que as pessoas soubessem que é meu pai, mas isso é injusto, afinal, também não sei quem são aquelas pessoas, suas vidas, suas histórias, só sei que todos os dias, existem muitos internos, tais pessoas também insistem em viver, pois que viver é uma dádiva, estar vivo é a maior comprovação do amor.

Nessa mesma intensidade, vejo o Senhor Manoel dos Reis Maia, meu pai, velho, meu querido velho, continuando a ensinar que viver é uma arte, é uma escolha. Ele fez a dele: decidiu viver com dignidade, maestria, placidez, serenidade e muita, muita vontade de não se entregar.

Honestamente, quando o vejo na fisioterapia me dou conta de que continua me ensinando, sempre. A vida se renova, a dele é um bálsamo transbordante. Enquanto eu puder vou beber dessa fonte.

Obrigado meu pai por existir.

Te amo muito. O menino do telhado cresceu... E continua te enxergando subir na casa. Eu envelheço resguardando a criança que há dentro de mim, a que sempre idolatrou seu pai.                             












  

terça-feira, 19 de junho de 2012

palavra, palavra, palavra

  

Palavra, fala, parolemot, não importa a língua, idioma, forma, ela é uma das maiores invenções humanas, uma das mais belas formas de expressão do pensamento. O pensamento não é linguagem, mas precisa dela para expressar sua aliteração, e a palavra é um dos seus principais mecanismos.

Os gregos desenvolveram uma teoria semioticista para expressão da linguagem, retomada ao longo da modernidade, durante o iluminismo, até chegar em Charles Peirce, Greimas e Sausurre como ícones desse estudo. Kant já havia construído uma teoria do significado explicitando como o pensamento opera a partir dos mecanismos da linguagem. 

A Neurociência e a Física Quântica têm dado grandes contribuições para os estudos da mente e como se dá a relação entre cérebro e linguagem, com ênfase no papel da fala, sem olvidar, é claro, da psicanálise, cujo substrato de análise vem da linguagem expressa nela. 

A palavra ou a falta de comunicabilidade está registrada na história. O caso talvez mais emblemático seja o da Torre de Babel, onde, segundo a mitologia judaica, para confundir os seus edificadores, Deus imputou aos homens os diversos falares, confundindo-os todos, impossibilitando que a torre alcançasse o céu. 

Marco Polo em suas viagens à China registrou maravilhado o mundo novo que se descortinava à sua frente. Seus diários são responsáveis pela criação do imaginário sobre o Oriente, e a forma de uso das palavras, uma espécie de realismo mágico primevo inventor de um mundo encantado, leia-se, diferente, distante do imaginário europeu. Os registros sobre a arquitetura, roupas, riquezas, até os animais, fez de sua narrativa uma literatura deslocante das condições lancinantes de uma Europa mergulhada em conflitos de toda ordem: econômica, cultural, espiritual. O outro era o exótico, diferente, distante. 

A literatura, pletora usuária da palavra, nos leva a lugares distantes sem nos tirar de casa, exatamente pelo uso dela. O que dizer de Franz Kafka? Alberto Camus, Hemingway, Dostoiévski, Gogol, Pushkin, Maiakovski, James Joyce, Fernando Pessoa, Pablo Neruda, Augusto dos Anjos, Gonçalves Dias, Érico Veríssimo, Drummond, Graciliano Ramos, Cecília Meireles, e tantos e tantos escritores que pela imensa capacidade de inventar mundos desenharam quadros mágicos em que verossimilhança e inverossimilhança perdem um certo sentido, já que a vida é a capacidade imaginativa de como se a idealiza, não como se vive, a vida está na literatura, não na prática.

O cinema, arte por excelência da imagem, usa o texto da imagem, já que imagem é texto, para também a partir da palavra corroborar para o quadro cinético da fotografia, quadro a quadro, frame a frame, às vezes de palavra em palavra. 

Várias películas fizeram o uso magistral da palavra. Retomo a memória para falar de uma em especial que sempre me vem à mente; trata-se de Um livro de cabeçeira, do diretor Peter Greenaway. Filme poético que versa sobre uma tradição japonesa hoje desaparecida: pintar os corpos escrevendo o diário da vida. Isso mesmo. Havia no Japão a tradição passada de pai para filho de escolher modelos, não necessariamente belos corpos, e sim, belas peles, textura suave, delicada, límpida como uma tela em branco, tez de tecido. Nela, a pele, o pai escrevia o diário da família, situações que não precisavam necessariamente ser eternizadas, mas visualizadas, fotografadas pela retina dos que viam o quadro da pele coberta, um ritual, uma mística, uma fusão entre corpo e texto, palavra e forma, já que a escrita japonesa é antes de tudo ideograma, portanto, símbolo, forma, texto e contexto. 

A forma como a personagem desenvolve sua relação com a escrita é sinestésica, por vezes erótica, já que o erotismo se traveste também na relação sexual, mas não só, erotismo é desejo, eros e thanatos, amor e morte, pulsão e finitude, recomeço e transcendência, potência e ação, carne e verbo, deslimites do corpo.

Dos filmes que já vi, foram poucos, considero este uma obra-prima da palavra, uma homenagem a ela e encenação mais encarnada da palavra que se faz vida, o verbo que virou carne. Este filme é uma boa tradução do narratário: a palavra exige a presença de um corpo e de um pintor não para existir, já existe em algum plano, e sim, para ser vista, desejada, lida, agraciada, desenhada, tocada, literalmente.

Além da literatura e do cinema, algo tão generoso, fortuito, encantado para falar da palavra seja a música; melodia, harmonia, ritmo e texto, tudo casado, junto, pois que a palavra é a ritmização sonora da expressão bela da alma. Quem nunca se lembrou daquele amor vivido, talvez não correspondido, daquela paixão intensa ao ouvir aquela música? Aquela que mais parece ter sido feito só para gente, retratando exatamente o que sentimos, quando na verdade é a arena da existência humana, demasiadamente humana.
                   

   UMA PALAVRA (Chico Buarque)          


Palavra prima
Uma palavra só, a crua palavra
Que quer dizer
Tudo
Anterior ao entendimento, palavra
Palavra viva
Palavra com temperatura, palavra
Que se produz
Muda
Feita de luz mais que de vento, palavra
Palavra dócil
Palavra d'agua pra qualquer moldura
Que se acomoda em balde, em verso, em mágoa
Qualquer feição de se manter palavra
Palavra minha
Matéria, minha criatura, palavra
Que me conduz
Mudo
E que me escreve desatento, palavra
Talvez à noite
Quase-palavra que um de nós murmura
Que ela mistura as letras que eu invento
Outras pronúncias do prazer, palavra
Palavra boa
Não de fazer literatura, palavra
Mas de habitar
Fundo
O coração do pensamento, palavra

Entrevista com Arton, de Sirius. Parte II

  Entrevista realizada no dia 14 de fevereiro de 2024, às 20:00, com duração de 1': 32'', gravada em um aparelho Motorola one zo...