Aconteceu ontem, dia 26 de maio, na avenida Litorânea, a primeira versão da marcha das vadias em São Luis, acontecimento que surgiu no Canadá após sucessivos casos de estupros, outros tipos de violência física e simbólica, que mulheres foram submetidas sob a alegação de que, as roupas que usavam eram o mote justificador para qualquer tipo de agressão. Ou seja, ao se vestirem como "vadias", estavam sim alimentando a sana, a verve, o paladino agressivo dos homens, autorizados a desrespeitaram as mulheres sob tal pretexto.
A marcha, que foi um sucesso, contou com a participação de várias entidades de classes, partidos políticos, ong's, movimentos sociais e políticos, imprensa, estudantes, intelectuais, e, claro, muitas mulheres e homens, "vestidos" a caráter, panfletando na avenida, discursando em carro de som, chamando a atenção dos transeuntes.
Fiquei me quedando pasmo como em pleno século XXI ainda é necessário fazer uma manifestação política para que as condições subjetivas e objetivas das mulheres sejam minimante respeitadas, e isso porque considero "respeito" tão somente a condição sine-qua-non para qualquer perspectiva de convivência social, respeito é concessão, o que almejo é alteridade, se colocar na condição do outro.
Como historiador não consigo refletir sem analisar o processo histórico que culminou na criminalização do comportamento feminino. E isso nasceu na supremacia física dos homens, depois econômica. Eu explico. Frederich Engels, parceiro de Karl Marx, explica em "O nascimento do Estado" como nas primeiras civilizações, Acadiana e Sumeriana, 6.000 anos a.c, a partir do desenvolvimento das técnicas agrícolas, a produtividade deixou de ser distribuída equitativamente para ser apropriada pelos homens mais fortes de tais sociedades, exatamente pelo fato de que o desenvolvimento técnico gerou o excedente agrícola, que foi apropriado pela força, exatamente pelos homens. Estavam criadas as condições para o surgimento do direito, da propriedade privada, do exército, do estado. Segundo Karl Marx, o estado nasceu para garantir a propriedade privada, o exército para garantir tal usurpação.
Com a supremacia da força física, agora institucionalizada no estado, nascera também a condição de gênero em considerar a mulher inferior, vide que elas estavam excluídas pela força dos rumos das sociedades nascentes. Coube a mulher o papel de esposa, mãe, sua primeira profissão, a segunda foi ser puta, prostituta, a outra, já que alijada dos rumos econômicos da sociedade, quando não escolhida para casar, não havia outro papel a não ser puta. E isso foi se corporificando à medida que o numero demográfico de mulheres acrescia o dos homens, ou seja, por uma questão de demanda, quando a oferta de mulheres sobrepujou dos homens, o olhar sobre elas também mudou, vide que, em tempos de quantidade efetiva de homens acima de mulheres, eles eram obrigados a se adornarem, usando brincos, colares, tudo para chamarem a atenção de possíveis pretendentes para esposas, eram elas que escolhiam seus parceiros. Quem primeiro usou brincos foram os homens.
As sociedades africanas, sub-sarianas, pré-colonização européia, eram comandadas pelas mulheres, matriarcais. Como os homens ocupavam-se demais com as guerras, cabia às mulheres o papel da economia doméstica, da criação dos filhos, tal como a condição de escolha do futuro rei, pois como não existia teste de DNA e havia a poligamia, era impossível determinar a paternidade do futuro líder, mas a barriga da mãe era o único critério de escolha. A poligamia era tanta masculina quanto feminina, esse processo só se inverteu com a islamização da África; a poligamia feminina passou a ser criminalizada, ademais, no islamismo o homem pode ter várias mulheres, desde que sustente todas com as mesmas condições, de novo o elemento econômico como fator de diferenciação social.
Um exemplo claro da condição econômica enquanto diferencial social foi a da Grécia clássica. Nesta sociedade, mulheres, estrangeiros, pobres, sequer eram cidadãos. Como diria Chico Buarque em "Mulheres de Atenas": Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas/geram pros seus maridos orgulho e raça de Atenas. Às mulheres cabia o papel de gerarem guerreiros para o estado.
Na sociedade européia medieval, em virtude de uma leitura enviesada, machista e equivocada da Bíblia, a mulher foi considerada a responsável pelo pecado original, logo, pela perdição, associada à astúcia, maledicência, à sedução, tudo porque a tradição católica tomou a passagem do gênesis ao pé da letra quando Deus condenou a mulher por ter incentivado Adão a comer da maça, além é claro, do equívoco de tomar a criação do homem, e da mulher pela costela de Adão de forma mais que deturpada. Pronto. As condições de demonização da condição feminina estavam criadas, por isso as que se envolviam com alquimia foram consideradas bruxas e queimadas na fogueira, além de tantas outras assassinadas sob a acusação de serem lascivas, perniciosas, más, sedutoras. Os homens nunca conseguiram lidar com a sedução feminina, sempre lhe causou torpor e perplexidade.
No entanto, a posição da igreja católica era dúbia, posto que até o século XIII o prostíbulo ficava ao lado da igreja, exatamente. Como o sexo era apenas para procriação, não era permitido aos homens "usarem" dos corpos femininos para outra prática que não o da procriação, então, estava liberado com a prostituta sob os auspícios da santa igreja a prática sexual dos homens após a missa como forma de extravasar seu libido sexual. Depois do século XIII a igreja católica baniu os prostíbulos para os arredores das cidades medievais.
Na idade moderna, os corpos já domesticados, chegou-se ao ponto de filósofos como Montesquieu, dentre outros, defenderem a condição inferior das mulheres. O ápice da "subjugação feminina" eram as festas de debutantes. De branco, quer dizer, virgens e castas, aos 15 anos, as meninas eram exibidas num baile de gala a corte, leia-se, aos supostos pretendentes verem suas pretensas esposas. As festas de debutantes eram uma exposição, uma oferta para futuros casamentos. Quem não se casava até os 25 anos virava freira ou encarregava-se de cuidar dos pais.
Somente no século XX as mulheres ocuparam postos de trabalho, após o terrível massacre de Boston que resultou no dia internacional da mulher. Foi também nesse século que passaram a votar, serem eleitas, queimaram os sutiãs, usaram pilulas anti-concepcionais, passaram a fazer sexo livre, se divorciaram, passaram a serem arrimos de famílias.
Então por que persistem práticas de violência contra as mulheres, por que chamá-las de vadias, só porque usam roupas decotadas? Somente pela permanência do machismo? Não, porque machismo não é uma condição de gênero, é uma prática cultural exercida por homens e mulheres. Há vários condicionantes para a perpetuação da violência contra mulher, alguns apontados aqui, mas a novidade é que chamar mulheres de vadias em pleno século XXI está relacionado muito contemporaneamente à forma como as mulheres passaram a exercer práticas masculinas, ou seja, quando um homem chama uma mulher de vadia, subrepticiamente está dizendo: "não queira ser como nós homens, teu lugar é de mulher". E quais práticas são essas que as mulheres passaram a praticar sem culpa? Trair fisicamente, transar sem amor, ficar na night, pegar, "dar para quem elas quiserem", trabalhar, consumir e não querer casar, viajarem sozinhas, saírem sozinhas, criarem filhos sozinhas, etc. A violência masculina é uma incapacidade de lidar com essa nova mulher que assume abertamente seus desejos. A verdade é que os homens passaram a assumir comportamentos femininos e estão assustados com esse novo quadro, estão atordoados, sem saber o que fazer, ficaram sensíveis, emotivos, apaixonados muito rapidamente.
Ainda assim, marchas como as de ontem são necessárias porque os dados mostram que a cada 5 minutos uma mulher é assassinada no Brasil vitima de violência masculina. O Maranhão apresenta os piores dados quando o assunto é violência doméstica, ocupamos os lastimáveis quadros.
Sonho com o dia em que marchas das vadias não sejam necessárias, que os homens entendam que as mulheres podem usarem seus corpos como quiserem, afinal, os corpos são as únicas coisas que efetivamente nos pertence. Até lá, é preciso ficar alerta e atento.
Parabéns aos organizadores e aos que estiveram presentes. Foi uma linda manifestação, de verdade, vontade de mudança e esperança.