sábado, 7 de abril de 2012

Ferro-velho


Por Tonny Araujo  


Sempre fui um amante da música. Desde muito pequeno lembro bem que me deliciava a ouvir clássicos por horas e horas. Clássicos estes que para mim eram a fonte de toda a inspiração e, de forma estranha, somente quando me valia da companhia deles, era capaz de me debruçar na cama e dar espaço a mais insana imaginação. Era um momento de quebra não tão somente da realidade, também era de abandono a velhas idéias, algo que excedia sobremaneira a relação entre consumidor e produto, fato que não acontecia quando me dispunha de albuns contemporâneos a mim. Talvez, porque a alta qualidade de gravação me soava enganadora, distante, ofensiva, enquanto que as mais antigas, de forma irônica, eram as que mais se aproximavam de meus sentimentos. Era de fato satisfatório.

Nasci aqui mesmo em minha casa, casa de tamanho significativo, neste bairro circunciso e calmo. Talvez o meu gosto por músicas antigas tenha nascido quando eu mesmo ainda não. É que, quando minha mãe ainda estava grávida, havia alguns vizinhos que se predispunham a deixar o volume de seus equipamentos de som ao máximo quase todos os dias com canções que traziam consigo não só o poder de lançar a alma em outra época, elas a rejuvenesciam, talvez para que aproveitassem uma vez mais a felicidade de um tempo que jamais voltará substancialmente. De certa forma, acredito que ainda enquanto feto, aquele som ecoado, aquele disco gravado com os últimos centavos que restavam dos músicos, me encantou desde ainda nem nascido.

Imagine nascer numa cidade cuja única opção de diversão se encontra nos supermercados? Eu sei. Não se pode viver sem adquirir bens de consumo em uma sociedade moderna como a nossa não é mesmo? Por essa razão, os velhos vizinhos, cansados desse ritmo agressivo de reabastecimento diário, optaram por dedicar mais tempo para si mesmos, para separar seus melhores discos (geralmente, os que estavam mais empoeirados) e investir em sensações alheias à sua carne velha, de uma estética ignorada até mesmo pelos próprios familiares. Eu os a admirava por isso. Muitos morreram ao passo dos anos, porém um perdurava junto de seus velhos alto-falantes, de suas tralhas, apegado ao ultrapassado, ao feio por não ser útil a muitos. Seu nome era Jeff Oldmind, um velho homem dedicado a manter vivas as tradições do interior que deixara para trás bem novo, por isso seus objetos materiais eram como pedaços de seu coração e as belas canções lhe recobravam os tempos em que fazia serenatas para as donzelas que um dia amou. Estas e muitas outras coisas me foram concedidas conhecer.

Numa certa vez em que junto de uns amigos invadimos sua propriedade, sem qualquer motivo lógico, a não ser, é claro, pelo desejo voraz de ter acesso a um local jamais pisado, mesmo que este estivesse a uns 50 metros de nossas próprias casas. Estávamos em quatro: Eu, Corson, Jonh e Sammy. Estudávamos na mesma escola, então tínhamos bastante tempo para arquitetar maneiras loucas e infantis de se divertir, como a dessa noite. Foi numa quarta-feira, às dez horas, nunca ei de esquecer aquela visão magnífica de sucatas, eu devia ter uns nove, ou dez anos, e aquilo para mim se constituiu como um reino de valiosa fortuna. Lembro bem que o velho Oldmind ouvia em seu quarto a canção “We belong together”, um clássico dos anos 50, e que embalou aquela visão esplendorosa. Havia carros dos anos 40 ali, rádios de botões maiores que as tampinhas de refrigerante, aparelhos de tv abertos, deixando à mostra peças enormes, como robôs aposentados e substituídos por outros de melhor tecnologia, porém com a mesma finalidade, mesma função.

Achávamos que poderíamos fazer o que quiséssemos, pois nunca o velho escutaria qualquer ruído que não fosse o da agulha no vinil, indicando a mudança de faixa, ou que o disco, que geralmente continha no máximo quatro músicas, tinha se finalizado.

Foi um momento excitante, me encontrava anestesiado dentro de um Carocha preto, sem rodas, quase que engolido por inteiro pelas trepadeiras que envolviam boa parte dos objetos dali. Me sentia realmente um soldado em plena Segunda Guerra. Para aumentar a emoção, encontrei fitas antigas no porta-luvas, uma delas era uma regravação do disco “That’ll be the day”, canção que teve outras tantas versões desde o início da década de 60. A adrenalina possuíra meu corpo por completo quando de alguma forma o toca-fitas funcionou e começou a tocar a música de mesmo nome. Mal conseguia reparar em meus amigos, muito menos no clima, ou mesmo lembrava em que século estava, só conseguia pensar em voar. Isso mesmo, aquele velho carro enterrado na terra, agora se tornara um luxuoso aeromotor, e nada poderia me trazer de volta ao presente.

Enquanto me deleitava com as músicas, fui capaz de perceber a ausência dos meus fiéis companheiros de aventura, e pude ouvir batidas que não eram da bateria gravada das canções. Era o velho Jeff. Era o velho Jeff Oldmind que batia à porta do veículo!
O medo tomou conta de minhas ações, tentava abrir a porta, porém não conseguia, estava trancada, e as canções que, outrora traziam êxtase, agora aumentavam meu terror diante daquele rosto de pele caída e expressão diabólica. Vendo minha relutância em abrir a porta para que entrasse, facilmente o fez, tranquilamente sentou no banco e mudou de faixa dizendo:

- Ah! Essa aqui é bem melhor, tem um compasso mais suave. Ouça! Disse com tamanho brilho nos olhos o tal senhor, sabendo que um ritmo mais lento, com certeza amenizaria a velocidade das batidas do meu coração. Era “True love ways”.

O velho realmente foi muito sábio, confesso, pois, pouco a pouco, ao ver suas expressões faciais, uma sensação libertadora se digladiava com o medo, outrora devorador que minha face mostrava. E ele ficava lá, com a cabeça recostada em seu banco, com um sorriso leve, e olhos fechados, como se as ondas sonoras da canção pudessem tocá-lo como mãos forçando seus lábios secos e de aparência triste, quando da ausência de tais canções, a se alegrarem.

Incomodado por vê-lo naquele invejoso estado, o indaguei:

- O que tem de tão especial nesta canção?
- Por favor, meu filho... Respirou por um tempo e prosseguiu:
- A pergunta é o que esta canção tem de especial para você?
- É a primeira vez que a ouço senhor, não a conhecia. Só ouço as canções de ritmo rápido.

Foi então que se pôs a derramar lágrimas tímidas, e me disse que aquela canção o fazia lembrar de seu falecido filho e de como conhecera sua esposa que partira a menos de dois meses.

- Tudo aconteceu num acidente de carro. Eu vivia sempre apressado, seguindo o ritmo da cidade, do trabalho. Foi horrível perder meu filho naquele dia, mais ainda minha mulher, que doente e com tais lembranças em sua mente, não suportou e se foi, me explicava o senhor.
- Descul...
- Calma! Não se desculpe. Não choro de tristeza. Os fatos foram tristes, eu sei, mas há muito tempo percebi que não é chorando de tristeza que as coisas se encaixarão. Perdi pessoas muito queridas, muito amadas, mas sei, e essa canção me dá forças para acreditar, que um dia nos encontraremos num lugar, numa hora, bem melhores.
- Quer dizer no céu, senhor?
- Qualquer dimensão em que haja amor, meu filho, outro planeta, até.
- Parece um sonho. Mas, o senhor não é velho demais para...
- Para acreditar em sonhos? Sorriu como nunca naquela noite e me respondeu:
- Você vê apenas uma carcaça velha, fraca e que logo, logo não existirá mais. Porém, os sonhos que todos carregamos são feitos de um elemento eterno, quanto melhores e maiores forem, maiores são as possibilidades de se tornarem realidade. Porque é disso que o mundo precisa. Entende?
- Então, quer dizer que o mundo precisa de bons pensamentos para se manter? O indaguei incrédulo com minha pergunta.
- Pelo visto, você aprende bem rápido. Disse satisfeito e completou:
- Você ainda é jovem, mas me parece um grande amante da música, assim como eu. Sua família deve ter muito orgulho de você. Não sei se sabe o meu nome, mas, não perguntarei o seu, às vezes nomes, soam de maneira a nos fazer construir pré-conceitos. Veja só o meu “Jeff Oldmind”. E eu ainda tenho vinte anos! E caimos na gargalhada.

Depois me disse para não ser tão apressado como as canções que gostava, e que não tratasse as pessoas como, por muito tempo ele as tratou, como imortais, que cada uma possui um pouco de “objeto antigo”, que sua importância atravessa os anos, por mais longos que sejam. E que esse era o caminho verdadeiro de amar.
Já seguro e contente pela companhia do velho Jeff, o olhei fixamente e abri a boca para dizê-lo a meu respeito. Queria lhe dizer o meu nome, em respeito à sua posição, e por educação.

- Mil desculpas. Prazer, senhor Jeff, o meu nome é...

E lá estava eu, ainda no Carocha preto. Sozinho. Era dia. Devo ter dormido aquela noite, e como tenho o sono pesado, meus amigos não conseguiram me acordar. Saí para ver o dia e percebi que estava em um ferro-velho. “Tudo que aconteceu não passou de um sonho?” Pensava comigo. Enquanto caminhava para casa e imaginava a possível surra que me esperava, no meio do caminho ouvi bem baixinho uma canção doce e suave que falava:
“Ao longo dos dias, nossos verdadeiros caminhos do amor nos trarão alegrias para compartilhar com aqueles que realmente importam. Às vezes nós suspiraremos, às vezes nós choraremos e nós saberemos, por que só você e eu conhecemos os caminhos do amor verdadeiro.” Sim, essa é a história de um sonhador.



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