domingo, 18 de março de 2012

Pão com ovo: uma deliciosa "peça" na sociabilidade ludovicense

Acabo de assistir ao excelente espetáculo teatral “Pão com Ovo”, encenado pelos excelentíssimos atores Cesar Boaes, Adeilson Santos e Charles Junior, integrantes da Cia. Santa Ignorância, logo ali, no maior cenário da representação teatral maranhense, o Teatro Arthur Azevedo, cujas obras de construção remontam aos anos de 1814-1816, sob a ordenança de Eleutério Lopes, cujas diatribes sobre o uso desse espaço em meados do século XIX foram tão bem escritas pela pena de João Francisco Lisboa em Theatro São Luis, de 1852. 

O teatro, palco e símbolo da opulência aristocrática maranhense, serviu para a ambientação da sátira sobre as sociabilidades ludovicenses, nessa peça de tirar o fôlego de tanto rir, exatamente porque é fruto de uma excelente pesquisa de tipos sociais existentes nessa cidade.    

Essa auto-ironia sobre os tipos ludovicenses está prenhe em nossa história, desde os sermões de Pe. Antonio Vieira no século XVII acerca da mentira do céu que cobre o Maranhão, depois da verve sibilina de João Lisboa, a acidez de Aluísio Azevedo, passando pelo D.I.V.A, Departamento de Investigação da Vida Alheia – uma alusão à língua do ludovicense –, que se reunia embaixo das árvores da praça João Lisboa em meados do século passado, catalogados por Domingos Vieira Filho, até o espetáculo teatral organizado pela Santa Ignorância, uma alusão à ignorância pelo não dimensionamento pelo que se é, porque o teatro maranhense não decola, porque não conseguimos fazer uma autocrítica sobre quem nós somos, ludovicenses, nossos vícios e péssimos hábitos e costumes. Enfim, a ignorância é santa porque quando não sabemos que somos ignorantes não somos obrigados a lidar com o nosso inferno, por isso, a ignorância torna-se santa. 

No entanto, usando de uma arma poderosa para chamar a atenção sobre quem somos, a comédia é sim uma dura crítica sobre os tipos locais, também com pitadas de elogio sobre nossa condição cultural. A personagem Clarisse, funcionária pública frustrada, carrega a ostentação de ter sido casada com homens da “fina aristocracia maranhense”, e se orgulha de, mesmo pós-divórcios, ter agregado os sobrenomes de “importantes famílias”, simbolização da segregação nobiliárquica que ronda o Maranhão até os dias de hoje. Ostentar nomes de famílias ricas maranhenses é um dos maiores exemplos da opressão que ronda essas bandas, uma ritualização do mau gosto, do peso herdado da escravatura, de como a ostentação do uso patrimonialista do estado é uma marca opressora dessa região. 

Não vou esmiuçar a peça aqui, embora esteja vívida em minha memória, mas uma pontuação cênica a partir das falas é a questão do péssimo atendimento existente em São Luís. Comecei a me questionar o porquê de tão péssimo atendimento em vários setores de serviços e alguns lampejos começaram a aparecer na minha cabeça. 

Um dos fatores diz respeito ao fato de que por detrás de todo bom atendimento se esconde uma falsidade burguesa em levar o cliente a acreditar que ele é importante. É importante não por ser, e sim por ter, pois o cliente é na verdade a realização do consumo, quer dizer, ele não é um ser, é um ente que serve ao interesse do grande capital, logo, o bom atendimento deita raízes numa lógica de competitividade do tipo: “cliente sempre tem razão”, leia-se: “se não for bem tratado ele entra na loja vizinha”. A competição é o princípio do “bom” atendimento. Aí, começam os problemas de São Luís. Tradicionalmente ligada a setores familiares tradicionais, o setor de serviço nunca se preocupou em atender bem porque sabia que se não tinha tu, ia tu mesmo, ou seja, não havia diversidade de serviços, oportunidades, competição. 

A outra questão reside no fato de que atender mal é uma estratégia inconsciente de vingança do atendente em relação ao cliente. Quando o cliente chega, ele elimina a possibilidade de ócio do atendente, logo, o cliente não é aliado, é oponente. Essa carga histórica advém da herança colonial cujas cidades brasileiras, dentre elas São Luís, estavam divididas entre os que consumiam, minoria, e os que não podiam consumir, grande maioria. O atendente, mal tratado pelo empregador, era obrigado a ouvir desaforos do cliente. Então, como a cidade não possuía uma burguesia pungente, não havia também esse fetiche do consumo tão característico de grandes metrópoles.    

Mas o que de fato choca na peça é a divisão social desta cidade. Notadamente dividida entre os que estão depois da ponte São Francisco, caracterizada como área “nobre”, que de nobre não tem nada, a não ser que tal acepção se ligue ao sentido histórico de nobreza, classe social opositora à burguesia durante o período moderno europeu, e os que estão antes da ponte, simbolizada pelos bairros periféricos e o opulento, embora em ruínas, centro histórico, boêmio, poético, faustoso, também escravocrata, fica nítida a ambiência que a parte nova da cidade assumiu e vai assumindo incorporando hábitos fakes, falsos, aliás, a parte nova é completamente fake, sem identidade, amorfa, pois qualquer cidade brasileira de médio e grande porte possui uma estrutura urbana, com equipamentos urbanos melhores que os de São Luís.

Os moradores de São Luís antes da ponte são os detentores da força da cultura popular, da magia, do encanto que São Luís tem diferente de qualquer outra cidade, da sua identidade local. São os tipos existentes deste lado da cidade que possuem cara própria, tão bem representada pela personagem Dijé, moradora do Fumacê. Aí que São Luis de fato se revela. 

As cidades são múltiplas, é verdade, são polifônicas, plurissignificativas, são partidas, Rio de Janeiro, São Paulo e tantas outras, São Luís também; não há nesse sentido uma única identidade e característica, mas como morador tenho preferência pela São Luís que enxergo e com a qual quero me relacionar. Eu prefiro a popular, rica em cultura local, miscigenada, mística, rítmica, única. A outra, uso de seus equipamentos urbanos, mas considero-a tão parecida e sem graça quanto qualquer cidade planejada nos últimos quarenta anos.

Na Grécia Antiga, tragédia e comédia eram elementos de uma mesma composição, apenas encenadas em fases distintas. Desta feita, a peça Pão com Ovo, usando de sátira, no fundo revela nossa tragédia: assumir características pequeno-burguesas tão mesquinhas quanto a personagem Clarisse, que explora empregadas domésticas, suborna garçom, mora em casa alugada, no entanto, tem um Celta novo, comprado em suaves 72 prestações.

Mesmo se não fosse uma excelente comédia, Pão com Ovo já mereceria aplausos pela Santa Ignorância do estado do Maranhão, que nem sequer apoia o teatro maranhense. Com dificuldade de se manter em pé o teatro local, a companhia supracitada nos faz sair de casa para rirmos de nós mesmos. 

Como em todo excesso de riso reside um pouco de loucura, pois rir de tudo é desespero, Pão com Ovo nos arranca lágrima de tantos risos, mas quando se volta para casa “dirigindo nossos carros nesse tráfego horroroso”,  a gente começa se perguntar se as nossas contradições têm tanta graça assim..

E viva os 400 anos de São Luís... Essa cidade suja, esburacada, sem praça pública decente, excludente, provinciana, aristocrática, linda, única, mágica..

Meu amigo paulista Felipe de Holanda tinha razão: “a melhor coisa do Maranhão é o povo maranhense”.

Tem muita gente endinheirada que faz pose para comer comida dita chique, mas no fundo é pobre de alma porque não possui autenticidade, está preso a uma imagem social. A verdadeira pobreza não é material, é espiritual.

Tem muita gente que nem sequer sabe sentar à mesa; eu prefiro muito das vezes comer pão com ovo.       


9 comentários:

  1. Felipe de Holanda felipedeholanda@uol.com.br
    7 abr (1 dia atrás)


    Veio: entrei no www.Versura.blog.henricão.viche

    Vc tem escrito coisas bem legais. Quis colaborar com uma coluna sua, aquela sobre os 400 anos, mas não consegui estabelecer um perfil para adicionar o texto (não sei qual a minha URL...?).


    Quanto ao “Pão com ovo”, muito legal, fiquei com muita vontade de ver a peço, parabéns pela excelente crítica. Só uma observação: acho que há uma certa simplificação sua quando afirmas “fica nítida a ambiência que a parte nova da cidade assumiu e vai assumindo incorporando hábitos fakes, falsos, alias, a parte nova é completamente fake, sem identidade, amorfa, pois qualquer cidade brasileira de médio e grande porte possui uma estrutura urbana, com equipamentos urbanos melhores que os de São Luis”.

    Acho que tem tantas mediações para se fazer aí – a forma como São Luís atualiza e ressignifica a exclusão social abre para uma interrogação sobre um caminho específico que pode assumir a modernização, típico da condição periférica em nosso grande país (nesse caso movida mais por comportamentos relacionados ao consumo, enquanto que muitas das formas produtivas e também as de solidariedade (de antivalor! Na acepção do Chico de Oliveira) vão sendo desarticuladas). Talvez o que vc. chame de “fake” seja exatamente o que é específico na nova configuração urbana, o que é dinâmico, o que é novo. Se vc. se recusa a considerar o “lado de lá da ponte” como um objeto que é parte da cultura da cidade, vc. corre o risco de recriar outro jogo de espelhos passadista, tal como a Athenas Brasileira, ou quejandos...

    Sei lá. Puxa, vc. se impressionou com a minha simpatia pelo Povo Maranhense. Vota em mim prá síndico da massa falida!?

    Abs, Véio

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  2. Meu caro Henrique Borralho, fiquei muito feliz com a sua sensibilidade em perceber a nossa leitura dessa cidade que tanto amamos, além de artita, sou também turismólogo e apaixonado pela relação das pessoas com a cidade, e é longa a nossa pesquisa da mímeses corporea dos nosso tipos maranhenses. A comédia sempre foi vista como algo menor e o preconceito com essa forma tão direta de arte, não deixa que alguns artistas vejam nosso espetáculo como uma pesquisa séria. Abraços !!!! César Boaes, ator e diretor de Pão com Ovo.

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  3. Querido César, admiro seu talento e coragem em dizer o que muitos pensam mas não expõem. Considero a peça um marco na história da critica a cidade. Depois do século XIX, quando a prática da critica era usual, pairou um silencio quase sepulcral sobre os hábitos citadinos, com o policiamento ideológico do tipo: quem critica não ama a cidade". Quando uma cidade começa a fazer auto-critica ela começa a deixar de ser mimada e crescer. Parabéns a vocês

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  4. http://ponto-continuando.blogspot.com.br/2012/05/sobre-determinadas-identificacoes.html

    por favor, senhores e senhoras, leiam isso. Será de grande valia. Por esse peça nos diz outras coisas sobre nós.

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  5. verdade, eu nunca fui no teatro daqui... pode...

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  6. eu gostei da peça mais o problema foi que havia muito preconceito e não precisa disso , ainda mais que sou negra com muito ORGULHO e também eu so tenho 13 anos e achei umas partes muito pesada ainda mais que e aberto para todas as idades ... PRECISA ? NAO PRECISA !!!!!!
    obrigada pela atenção

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    1. eu te entendo, mas acredito que o sentido da peça não seja racista. eles apenas fizeram uma paródia com o racismo velado no Maranhão. Ao acentuar a questão racial estão positivando, pois assim mostra nossas contradições.

      abraçpos

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  7. Assistir a peça no teatro Artur Azevedo, achei algumas partes muito preconceituosa em relação ao negro são termos pejorativos que abaixa a auto estima das pessoas negras presentes, além do mais que o Racismo é crime inafiançável. PRECISA ?????????? NÃO PRECISA.

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    Respostas
    1. olha, eu te entendo, mas não achei de caráter racista, muito pelo contrário, acho que ao falar de negro de uma forma pejorativa eles queriam evidenciar como somos racistas e a fazemos questões de esconder isso. ou seja, eles evidenciaram e denunciaram o racismo, ao invés de ocultá-lo

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