A definição psicanalítica do ego (acepção freudiana) é a afirmação da subjetividade, tentativa de análise das
condições intrínsecas do indivíduo, tudo o que o cerca e o define, e que por
razões de sua inserção e historicidade, se esconde subjacente em algum lugar do
inconsciente, vez por outra aflorando. Por essa razão, por exemplo, é que
elementos como a religião se tornam ao mesmo tempo um vórtice do
sujeito, uma inclinação de suas tendências, uma válvula de escape de suas
tendências fugidias da realidade, e/ou no limite, uma válvula exatamente por
ser uma das tendências do seu vórtice.
Por uma dessas acepções do papel da religião foi que Karl
Marx petardou: “a religião é o ópio do povo”. A religião em vez de
fazer o seu papel de relegere (releitura, segundo Giorgio
Agambem), de levar o sujeito ao conhecimento do seu self, na
proposição socrática da maiêutica do “conhece-te a ti mesmo”, relega ao
plano da transcendência as circunstâncias de decisão de sua vida, delega a
outrem a tomada de decisão política, de mudança do curso da história, ou seja,
foge da circunstância da disputa, às vezes necessária para a mudança de posição
dos papéis sociais, de uma dada realidade social sob a ótica de outro grupo.
Essa concepção de religião de fato não ajuda muito o
sujeito na descoberta do seu EU. Eliminar a circunstância de quem quer que
seja, negar tendências, vontades, potências e desejos, é sublimar as
especificidades de cada subjetividade, o que a formou, como e por que,
é perder de vista o sentido da existência: conhecermo-nos e levarmos os outros
sujeitos a também se conhecerem.
Nesse âmbito, o da descoberta da existência, de forma
antagônica e antitética, psicanálise e espiritualismo, cada um ao seu modo,
contribui. A psicanálise na afirmação do EU, o espiritualismo idem. A questão é
qual concepção de espiritualismo? Na psicanálise a afirmação do EU faz-se na
existência do outro, no espiritualismo idem. Ambas de certa forma definem a partir do outro a construção da identidade do sujeito (toda
identidade implica apropriação e negação de significados), negando e
reforçando ao mesmo tempo o seu EU a partir da coexistência.
Então, qual seria a diferença entre psicanálise e
espiritualismo quanto ao processo de descoberta do EU? Várias, não seria
diferença, mas diferenças, e, grosso modo, pode ser resumido nesse axioma: o
espiritualismo parte do pressuposto que a existência não se encerra no plano da
imanência, ou seja, a existência nesse plano é parte de um projeto muito maior,
no entanto, a descoberta do plano maior nasce da relação comunal, das relações
sociais, da convivência em geral, visto que todos estão interligados.
Partindo dessa premissa, a convivência humana, a
cognominada humanidade, é um artifício da espiritualidade para a aprendizagem
do EU a partir e pelo OUTRO. O que a história entende por família enquanto
agrupamento social estabelecido por laços e necessidade de
sobrevivência, depois agrupamento político, o espiritualismo entende como a
primeira necessidade de fazer o EU entender que existe o outro. Sendo assim,
para aprender a amar a humanidade, foi necessário primeiro aprender a amar o
mais próximo: pai, mãe, irmãos, irmãs, tios, etc.
Não há nessa premissa negação das explicações históricas e
sociológicas, mas ampliação do sentido ontológico do sujeito. Espiritualismo
não nega a ciência, a história, a filosofia, ao contrário, as amplia. Quando, por exemplo, desenvolveu-se a
concepção grega de família gerando posteriormente o aparecimento do estado a
partir dos genes, clãs, cúrias/fratias, tribos até chegar à pólis,
isto pode ser entendido como premissa da organização sociopolítica grega, muito
parecida em outros lugares, levando tais sujeitos por necessidade, ligação e
emanação fraternal a defenderem seus núcleos, suas tribos, cidades-estados,
criando um sentimento gregário, presente na passagem dos hominídeos à condição
humana, embora em menor complexidade. No entanto, o encastelamento de uma noção
de família restrita ao grupo ao qual os EUS pertencem foi o mote
para o surgimento das disputas, guerras, genocídios. Todos nós pertencemos ao
gênero humano, todos temos a mesma origem. Enquanto essa concepção holística
não for compreendida, permanecerão as brigas, disputas, revoluções, intrigas,
afirmação dos egos.
Para a compreensão dessa visão
holística foi que Jesus, o Cristo, o primeiro humanista, conotando uma nova
visão das leis mosaicas, reformando o judaísmo, estabelece a nova aliança e o
princípio máximo da convivência humana ao declarar: “amarás o próximo como a ti mesmo”. O amor enquanto sentimento já existia antes
de Jesus, a conotação de amar indefinidamente a toda humanidade como a si
mesmo, não.
Tomando essa noção de amor, podem alguns considerarem
enquanto aspecto da negação do EU e das subjetividades, afinal, como é possível
viver a partir de uma ideia de que se alguém lhe bater numa face deve-se
oferecer a outra? Isso representa uma fraqueza, posto que todas as
vezes que alguém for afrontado não seria capaz de defender-se, certo? Errado.
Existe nisso um princípio de alteridade. O que significa oferecer outra face
quando lhe batem noutra? Um exercício de olhar a mesma situação de outro
ângulo. Se todas as vezes que formos ofendidos, magoados, irritados reagimos
intempestivamente, estamos perdendo a capacidade de nos colocarmos na condição
do outro, perceber sob qual ótica tal atitude foi tomada e possivelmente
mudarmos de direção, portanto, oferecer outra face é olhar para o outro lado e
enxergar a mesma cena de forma diferente.
Mas claro! Jesus era Jesus, e, segundo Nietzsche, “o cristianismo é impraticável porque o único cristão
morreu na cruz”. Certo. Porém, o que Nietzsche criticou foi o cristianismo
enquanto moris, moral, condutas arraigadas em práticas culturais
que delegavam ao plano futuro as decisões que deveriam ser tomadas aqui, neste
plano. O sujeito cristianizado, deslocado de sua condição social, proibido de
tomar decisões, atribuía ao além os infortúnios de sua vida, perdia de vista a
percepção de que a existência fazia no fazer-se, na compreensão íntima do que
competia a cada indivíduo. Nesse aspecto e sob essa ótica não contribuía para a
descoberta do self, mas não é o cristianismo de Jesus em si, e sim
enquanto moris, tradição.
Há outras possibilidades de compreensão do cristianismo,
como a de Spinoza, por exemplo, que pregava a emancipação do sujeito e não o
aprisionamento a dogmas. O cristianismo de Jesus é existencialista já que
advoga que a responsabilidade sobre a vida de cada um é de cada um: “o reino
dos céus é tomado à força”.
O princípio do juízo final, uma alegoria da existência, é uma
simbologia do que se processa todos os dias nas mentes de todos os indivíduos:
a consciência, lugar onde está plantada a semente de Deus. Portanto, cada um
todos os dias tem que lidar com as escolhas que faz e as que deixa de fazer. O
outro, muitas das vezes o alterego, é o espelho onde se veem refletidas as
atitudes, por isso todos estamos interconectados, não há possibilidade de
crescimento sem o outro.
Quando muitas das vezes nos encontramos com alguém e
despertamos empatia ou simpatia, o que deveríamos nos perguntar é o porquê de
tal sentimento. Qual atitude refletida no outro é projeção do EU?
Eu ainda não esclareci de que espiritualismo estou
derrogando. Aquele que respeita a diferença, que entende que cada sujeito tem
sua trajetória e tempo específicos para o entendimento de sua identidade, que
respeita a condição ôntica e ontológica do sujeito, não se ufana em ser a única
verdade – já que existem tradições culturais distintas, diferentes formas de
ligação com o cosmos, que é paciente em esperar o crescimento pessoal de cada
um, que conotou o lugar dos problemas como princípio de
aprendizagem; as dificuldades, os excessos, as restrições, as faltas, ausências
e que tudo que foi designado como perda, trata-se de um processo emblemático de
entendimento sobre como cada um lida com essas questões e se posiciona diante
deles. Os que entendem esse princípio e aprendem com ele, avançam. Os que não,
estancam, e vão continuar passando pelos mesmos problemas até entenderem que
eles existem para serem ultrapassados por maturidade, não arrancados por Deus.
Deus é existencialista.
De diferentes formas e em lugares Deus “apareceu” em grupos
humanos distintos. Para muitos historiadores, filósofos, uma necessidade
ascética de criação de algo que desse conta daquilo que não explicava: os
fenômenos naturais. E a criação de Deus atendia ao princípio de pertencimento a
algo maior que ele, afinal, sem explicação, não restava outra coisa a não ser
legar a um ser superior o princípio de tudo. Dessa forma, Deus começava a figurar
como espécie de arquétipo de várias sociedades, e uma questão a ser estudada
pela psicanálise.
Nesse aspecto é que uma concepção psicanalítica freudiana e
lacaniana (não a jungiana) e espiritualismo não se misturam; para a primeira a
existência do EU se encerra em si mesmo; para a segunda, todo EU é uma parte de
Deus. Deus está em todos os EUS.
E nisso também as diferenças entre espiritualismo e
psicanálise aumentam. Todos os valores apregoados pelo cristianismo, a ética
cristã, não a histórica, e sim a do próprio cristo, seriam supostamente a
negação do ego, portanto, uma forma de desfiguração do sujeito. De fato, o
sentido de negação do EU na ética do Cristo é a negação do Ego, a questão é: de
qual Ego? O Ego escondido em artimanhas de bondade, que de bondade não tem
nada, pois se esconde atrás de uma ideia de recompensa, num falso altruísmo,
numa falsa doação que sempre espera resposta a todo ato praticado; Ego que
escamoteia o orgulho, a vaidade, por vezes usando palco e plateia de lutas
sociais, supostamente na defesa de princípios de igualdade, no entanto, no
exercício do poder revelam-se atitudes despóticas, autoritárias, de sujeitos e
personalidades que sempre discursaram contra isso; Ego incapaz de abdicar de
conquistas pessoais em detrimento da coletividade; Ego que não ouve, que
silencia a voz do outro; que não é prudente, é cedo no falar e tardio no ouvir;
aquele que aplaca injustiça; que aponta os defeitos dos outros e não é capaz de
enxergar a si próprio; que é sempre o correto, cujos interesses estão acima de
qualquer coisa; que possui verborragia, ainda que o discurso seja de linguagem
fática; que nunca erra; que não pratica alteridade, impõe sua vontade; humilha,
massacra, ofende, xinga, grita, maltrata, rouba, escamoteia, mente, mata, tudo
na defesa de si mesmo. Esse ego que muitos defendem como força, para Jesus é
fraqueza.
O Ego que se preocupa com o outro não é sinal de fraqueza
ou de negação de si mesmo, é sinal de força, afinal, somente um EGO equilibrado
tenta ajudar o outro na esperança de que também encontre o seu self,
pois ele silenciosamente tem consciência de si.