quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Marcados para o descarte?

MARCADOS PARA O DESCARTE?

Por Cláudio Zannoni

A conjuntura nacional dos últimos meses apresenta várias inquietações que merecem nossa atenção. Entre elas, uma em particular nos preocupa: o aumento da violência no campo envolvendo vários setores numa luta díspare e deixando vítimas a cada dia.
Os noticiários passaram a divulgar, no mês de maio, o assassinato, no interior do Estado do Pará, em Nova Ipixuna, de duas lideranças camponesas mortas friamente a tiros numa emboscada: José Cláudio Ribeiro da Silva e sua mulher Maria do Espírito Santo da Silva, no dia 24 de maio. Alguns dias depois, em 27 de maio, mais outra liderança foi assassinada em Vista Alegre do Abunã, em Porto Velho (RO): Adelino Ramos. No dia 29, mais uma liderança é morta novamente em Nova Ipixuna (PA): Eremilton Pereira dos Santos, de vinte e cinco anos.
O que essas mortes têm em comum?
·         todas elas foram prenunciadas;
·         as ameaças haviam sido denunciadas publicamente, mas nenhuma providência foi tomada pelos órgãos competentes a fim de preservar a vidas dessas pessoas[1];
·         essas lideranças vitimadas vinham, há tempo, denunciando a derrubada e o roubo ilegal de madeira por parte de madeireiros da região, todos eles identificados;
·         foram vitimadas por pistoleiros profissionais que mataram covardemente pessoas indefesas e desarmadas;
·         todos eram pais de famílias pobres que lutavam para sustentar seus lares e que usavam sua liderança para dar vez e voz a uma população abandonada neste país.
Foi necessário o sacrifício sangrento dessas lideranças para que o Governo Federal montasse uma “força tarefa” para poder averiguar fatos que há tempos vinham sendo denunciados pelas entidades sindicais e pelos órgãos de defesa dos direitos humanos.
Mas a violência não pára por aí. No país inteiro, lideranças quilombolas continuam denunciando a não regularização de suas terras, legitimamente reconhecidas como tais, mas que continuam invadidas. No entanto, a algumas delas é tolhida a liberdade elementar de ir e vir, tendo que se movimentar com escolta policial até dentro de sua própria casa.
No Maranhão, na Bahia, no Estado do Rio de Janeiro e quantos outros lugares ecoa o desejo de todos eles por uma terra onde possam viver e trabalhar em paz. Até a greve de fome se tornou necessária como meio para chamar a atenção dos órgãos públicos a cumprirem seu dever constitucional de preservar a vida dos cidadãos.
Os dados divulgados no mês de junho pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), através o Relatório sobre as violências praticadas contra os Povos Indígenas do Brasil[2], mostra dados alarmantes:
·         Violência Contra o Patrimônio: 92
·         Violência contra a pessoa: 1.705
·         Violência por Omissão do Poder Público: 42.958
·         Destes: 60 assassinatos
                        152 ameaças de morte
                          92 crianças mortas por desnutrição e doenças facilmente tratáveis
Diante de tudo isto vale a pena se questionar e relacionar estes dados com a conjuntura atual e com algumas décadas passadas.
Em primeiro lugar nossa atenção volta à década de 1980 quando os conflitos no campo tomaram proporções exacerbadas. Com a abertura política da Nova República, os campos em conflito mostraram sua verdadeira cara. Se até aquele momento eram mediados por interesses comuns representados por inúmeras tendências políticas dentro de um único partido (MDB), naquele período afloraram interesses divergentes no campo político e social.
O surgimento do Movimento dos Sem Terra (MST), o fortalecimento dos Sindicados dos Trabalhadores Rurais (STRs), o surgimento da União Democrática Ruralista (UDR), a criação de inúmeros partidos defendendo interesses de grupos políticos e econômicos particulares, a mobilização de forças sociais e políticas para a elaboração da Nova Constituição do País (aprovada em 1988), recrudesceram os conflitos no campo que se manifestaram de forma muito violenta.
Hoje o campo social e político retornam à década com força maior. Os conflitos e as divergências se tornam sempre mais evidentes e, diante de conquistas políticas e sociais em nível jurídico e institucional, voltam a se contrapor à violência covarde da “pistolagem” e de interesses econômicos e políticos em nível macro conjuntural.
Em segundo lugar as lutas ambientalistas em nível não só nacional como também internacional se contrapõem a interesses políticos escusos a tal ponto de aprovar na Câmara dos Deputados um Código Ambiental que concede o “indulto” a quem destruiu ilegalmente a floresta.
De certa maneira incentiva os madeireiros a continuarem com o desmatamento, “protegidos” por uma não punição exemplar a quem acabou com o patrimônio da nação.
Em terceiro lugar uma nova consciência de classe que ultrapassa as fronteiras do proletariado e coloca no cenário novos atores fortalecidos como os ambientalistas, os indígenas, os sem terra, os sem teto, os atingidos por barragens e pela base espacial, etc. Como consequência disso, novas formas de luta afloram na conjuntura atual.
Enfim, em quarto lugar, um governo de esquerda, eleito pela aclamação popular com Lula e agora com Dilma, com uma aprovação nunca vista antes, mas que não consegue responder concretamente aos anseios do povo por mais justiça, por paz social, por melhorias da qualidade de vida da população; que ao invés de prevenir os conflitos e a violência chega depois para tentar remediar a ferida aberta; que contrapõe a estes anseios, projetos populistas que, de certa forma, rompem com a consciência de classe da população e com a possível mobilização das classes pobres em vista de melhorias concretas nos campos primordiais como educação, saúde, moradia, trabalho e enfim o direito a uma vida digna e real para todos. Sem um investimento profundo nestes setores o futuro continuará incerto e opaco.
O Brasil traz no “gene” histórico a vocação para o latifúndio; a mentalidade dos proprietários de terras e grandes empresários rurais considera índios e camponeses guardiães temporários das terras que certamente explorarão. E esses guardiães então passam à condição de obstáculos a serem removidos a qualquer preço. É claro que a miséria moral, somada à econômica, formaram uma rede especializada em matar para ganhar dinheiro. Debatem-se, nesse cenário, os interesses do latifúndio preocupado em manter seus lucros contra os desejos de uma população trabalhadora que procura, com seu trabalho, sustentar inúmeras famílias que não tiveram a possibilidade de acesso a uma vida decente e humana. Esse é o Brasil do século XXI cuja política fundiária condiz perfeitamente com o atraso de séculos passados.

Claudio Zannoni
Editorial publicado na revista
Cadernos de Pesquisa Vol. 18, n. 2
maio-agosto de 2011

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