segunda-feira, 31 de outubro de 2011

um tema buarqueano

Um incenso aceso sobre o birô, a capa do último cd sobre a mesa; tom cinza, escondendo seu talento, meio blasé, mas quando se abre o encarte é colorido, cada faixa musical tem uma cor, revelando a multiplicidade dos olhares sobre as letras, nome do disco simples, o do próprio autor, um notebook, a última edição da revista Rolling Stones trazendo na capa um homem bonito, olhos cor de ardósia, cigarro na mão esquerda e um paletó vermelho estranho, imagem nada autorreferenciada, desfocada, como se debochasse de uma imagem de homem culto, referência, icônica, sua veste não diz quem verdadeiramente o é, se bem que a camisa está entreaberta, ou seja, não é bem um paletó sério, – só vestiu paletó apenas duas vezes na vida, segundo ele próprio, pode ser que para a capa dessa revista tenha sido a terceira vez... Esse foi o cenário que criei para escrever este artigo que há tempos adormece em mim envelhecendo como um vinho, talvez não tão bom, mas por mim aguardado. 

Refiro-me, neste artigo, sobre o que é para mim e para os editores da revista Rolling Stones o maior compositor brasileiro vivo: simplesmente Francisco Buarque de Hollanda, o Chico Buarque, o Chico, codinome do seu último cd, e é sobre ele que irei me deter. 

Antes, porém, talvez seja desnecessário explicitar as razões do porquê de escrever um artigo sobre o último trabalho dele, mas já alguns anos tenho alimentado o medo de ser o último. Cabe aqui minha pequena homenagem a esse homem que sempre homenageou a literatura, o teatro, e sobretudo, a música brasileira a partir das construções melódicas de fino trato, bem cuidado, casando a versatilidade da língua portuguesa camoniana-cabralina-bandeira-viniciusniana com o soar de uma tonicidade tão rica do cancioneiro popular, apesar das constantes críticas do seu impopulismo.

Ele me foi apresentado ainda em fase de infância, entre luaradas, boemias familiares que minhas irmãs mais velhas que eu, cantarolaram músicas de um tal de Chico Buarque, nada popular entre os da minha geração, referência de pessoas mais velhas. Antes porém de minhas irmãs cantarolarem, meu pai, hoje com 84 anos de idade, vez por outra assobiava a melodia de Carolina. Cresci ouvindo meu pai cantar tal música. Certa vez, quando eu bebia no Bambu Bar, referência para os universitários da UFMA, alguém colocou na vitrola, ainda era vitrola, tal música, corri para saber de quem era, visto que me remetia à tenra infância. Deparei-me com o Chico. Quando de novo em festa de família, meu pai cantarolou Carolina, perguntei-lhe de quem era tal composição e então bradou que não se lembrava, já se tratava de sua infância. Aquela indistinção temporal marcou minha concepção sobre a relação espaço-tempo e foi aí que entendi que não existe um único tempo, mas tempos; os das lembranças, dos afetos, das felicidades não obedecem à cronologia dos tempos modernos, cartesianos e rígidos. O tempo ou a memória podem ir tanto para frente quanto para trás. Carolina era para meu pai o tempo da felicidade, pois era a memória sentimental que tal música remetia, e felicidade para ele era a infância.

Ainda na faculdade travei a amizade eterna com Alan Kardec que me "reapresentou" Chico, agora numa vertente mais apaixonada, típica de um homem até então com seus 38 anos de idade, vivido e com “tantos sentimentos” constelados por suas vivências. No meu caso, era a fase da descoberta do amor, da escolha das melhores palavras, a procura do melhor piropo, do melhor verso e poema para agradar uma mulher. E nisso Chico me ajudou, mas não só.

Começava a época da descoberta do mundo não pelas pegadas das viagens mundo afora – eu não era Cicero que pensava com os pés – e sim, das leituras dos autores de história e sociologia, de filosofia e antropologia. Chico me abriu a vida como um leque, e eu mergulhava na historicidade deste país tentando decifrar suas idiossincrasias através de suas músicas. Aprendi em parte história do Brasil ouvindo-o. Depois, já como professor de história do Brasil, dava-me o direito de ministrar aulas com tais melodias. Era uma construção fácil, poética, metafórica, rica em significados e possibilidades. Era sempre melhor que as outras aulas. 

Depois veio a fase da descoberta semântica e sintagmática de suas letras. Foi aí que a paixão desbundou de vez, e foi eterna. A riqueza de detalhes linguísticos, a versatilidade compósita em canções que escondiam a riqueza metafórica se mostrava como um labirinto onde me obrigava a entender a delicadeza da profusão de uma língua que escondia de si mesma o próprio sentido, como se diante de um espelho, ela, a língua, perguntasse para si própria o significado do que havia tentado dizer, e toda vez que respondia aparecia um novo espelho com novas possibilidades interpretativas. 

Foi assim que me empenhei em ter a coleção completa de sua obra, levei exatos 10 anos, um dos orgulhos da minha vida, além de ser pai de Lucía e Milene. Cada vez que novo cd era anunciado, a ansiedade se igualava ao receio de saber quando seria o próximo depois desse. E assim, da música passei para os textos literários. Li todos os romances, quase toda a fortuna crítica sobre sua produção, e uma coleção quase completa de tudo que se falou e se publicou sobre ele. Ainda assim, não me julgo especialista ou conhecedor, apenas me intitulo “chicolátra”.

Entretanto, como devoto do Chico, percebi uma mudança musical nos seus últimos discos. A força de evocação de suas composições mudam disco a disco. Foi se tornando minimalista, ainda mais cuidadoso, sintético, musicalmente mais refinado, portanto, menos afeito a grandes sucessos, ainda que nunca tenha sido um campeão de vendas. Segundo ele, a fonte não seca, mas a motivação sim. Parte desse minimalismo musical, penso eu, advém da interferência literária, cada vez faz música como escreve, embora ele advogue que quando faz uma coisa não pense na outra. Para mim há sinestesia. Portanto, se ele ler este artigo, discordará; ele nunca vai ler, pelas mesmas razões que John e Paul talvez nunca tenham tido contato com a música do Milton, Para Lennon e McCartney.

Confesso que a cada novo, disco desde As Cidades, é preciso ouvir várias vezes as músicas para ter familiaridade com elas, foi assim com Carioca, mas como nos outros discos, esse último, à medida que ouço, adentro nas filigranas da composição e passo a gostar cada vez mais. Ele talvez tenha deixado pra trás versos palíndromos, proparoxismos de letras como em Construção, simbiose linguística das línguas portuguesa e francesa como em Joana Francesa, rasgação de amores como em Atrás da porta, Olhos nos olhos, mas continua enigmático como em Querido Diário, cujo verso amar uma mulher sem orifício foi duramente criticado sendo chamado de apelação e que, segundo o próprio Chico, significa amar uma mulher casta, santa, sem possibilidades de relação sexual. 

O disco Chico tem 10 músicas e verdadeiras pérolas. Particularmente gosto mais das faixas: 01 - Querido Diário, 03 - Essa pequena, 5- Se eu soubesse, 7 - Sou eu, 9- Barafunda e 10 - Sinhá. A faixa Sou eu caiu nas graças da mídia por conta do estrondoso cantor Diogo Nogueira, e a música executada em demasia na rádio é Pequeno Diário. Mas chamo a atenção para a faixa 10 - Sinhá. A história se passa numa senzala onde um escravo é acusado de perscrutar a sinhá tomando banho, e esta como punição manda cegar os olhos de quem supostamente a olhava, sendo enfeitiçada pelo escravo. A força da batida do bumbo, o choro de dores inexprimíveis do escravo, a lamentação e a vingança retomam um velho Chico das raízes mais profundas da matriz cultural brasileira. O bom e velho Chico se reinventa. 

Viva a sua vitalidade e capacidade criativa, mesmo que suas composições se modifiquem disco a disco. Que bom!!! Assim, enquanto ele compor e cantar, teremos a grata satisfação de decifrar suas canções, boas e amadurecidas como um bom vinho, um vinho buarqueano. 

O incenso acabou... O cheiro e a melodia compuseram um belo cenário eivado de uma trilha sonora do nosso maior compositor brasileiro vivo... e que perdure sua existência, não se apagando como o incenso que acendi para escrever este artigo. A força de sua criação dura bem mais que isso!!!! Ele continuará enxergando, mesmo que uma sinhá mandasse cegá-lo.  















quinta-feira, 27 de outubro de 2011

um conto de Noraiev

A aldeia Tamitov sempre se destacou dentre os vales de Noraiev. Uma parte por sua beleza pungente, rios calmos e perenes, temperatura amena, verde constante, dádiva da natureza. Outra, pelo equilíbrio do povo Ramstov; pequenos aldeões, trabalhadores impávidos, justos, orgulhosos por sua condição ordeira, gente honesta, autorreferenciados, centrados, profiláticos. Dentre os aldeões, o jovem Taciturnus sempre se destacou por sua condição política e militante das questões do vale, bradando contra a forma desigual como líderes da aldeia de Tamitov dividiam o resultado da plantação de suculus – principal fonte de energia do vale – produto ambicionado por moradores de aldeias vizinhas que por vezes ameaçam invadir Tamitov. 

Para Taciturnus, a condição política do povo Ramstov era o mote para a insegurança perpetrada pelas invasões constantes. Ele considerava que a falta de justiça na distribuição do suculus gerava uma ausência de sentimento de pertencimento por parte dos aldeões no que tange à identificação com a aldeia e que essa fragilidade era uma janela de oportunidade para cobiçadores da aldeia Tamitov, que, se ao menos não a tomassem, perturbariam por demais sua pacata condição. Parte da preocupação de Taciturnus era producente, parte, fruto de sua vaidade em se colocar acima dos demais aldeões considerando sua preocupação, visão política e estratégica acima das demais, além de uma falta de compreensão sobre os motivos que levavam outros povos a perturbarem a ordem social de Tamitov. As constantes invasões advinham do discurso altaneiro e autorreferenciado do povo Ramstov que sempre apregoava a paz absoluta, o perfeito equilíbrio, a ultrainteligência, gerando cobiça e despertando a inveja.

A desconfiança de Taciturnus um dia vingou. Numa manhã de trabalho coletivo nas plantações de suculus, ele avistou as tropas armadas do povo Graev descendo o alto da colina desembestadamente, com urros e gritos como num canto de guerra. Da forma apressada e insana como desciam, não tardariam a chegar nas imediações de Tamitov. Apressado, saiu correndo deixando a ceifadeira de lado à procura do homem mais sábio da aldeia, o mais velho, sereno, culto, amado e respeitado: o bom e velho Gaiateo. Só ele saberia exatamente o que fazer, afinal, Taciturnus temia não apenas o saque nos armazéns de suculus, como também a integridade física dos aldeões. Esbaforido, Taciturnus vai ao encontro do velho ancião na esperança de que desse uma solução mágica e imediata à iminente ameaça. Já sabendo o que se passava, Gaiateo serenamente reúne os aldeões e pede que, com calma, caminhassem para fora da aldeia à procura momentânea de um abrigo, até que o povo Graev saciasse sua vontade insana de perturbar a ordem de Tamitov. Todos placidamente atenderem aos conselhos de Gaiateo, menos Taciturnus. Para ele, placidez, calmaria e parcimônia não são os melhores predicativos para uma resistência, o enfrentamento lhe cabia bem, mas isso não era compartilhado pelos demais aldeões. 

À medida que o povo Ramstov caminhava tranquilamente à procura de um novo momentâneo lugar, a impaciência de Taciturnus avizinhava a placidez de Gaiateo, sempre questionando-o como faria para retomar a aldeia. A resposta do velho sábio era sempre a mesma: – no momento certo saberemos como, sobretudo tu!!!!

O estranho é que a momentânea invasão do povo Graev não assoberbava os demais moradores. A alteração da rotina de fato era um incômodo, mas já estavam acostumados com os constantes ataques e a tática de não reagir sempre dera certo, porque não daria daquela vez? No fundo, tais ataques ganharam uma dimensão para além do normal somente na acepção do jovem lidador pela justiça social, não para os demais. Era como se os restantes aldeões soubessem que a fartura de verdes pastos, a suculência da terra, os rios calmos e perenes não eram uma condição de outras aldeias e a saída momentânea também era uma compensação, uma forma estranha de compartilhamento do que eles desfrutavam.

No alto do vale de Liminof, Gaiateo bradou: – Paremos aqui!! Calmos, os aldeões de Tamitov assistiam à ocupação de sua aldeia percebendo que o povo Graev necessariamente não destruía nada, apenas se regozijavam da momentânea alteração da rotina, felicitavam-se pelo incômodo causado, pela ferida cindida no orgulho do povo Ramstov.   

Saciado o desejo de perturbação do povo Graev, Gaiateo serenamente se levanta e pede que todos tomem seus postos, era hora de voltar à rotina da vida. – Como, brada Taciturnus, se eles ainda estão lá e não vejo disposição de saírem ? – Vamos enfrentá-los? Sim, respondeu o velho sábio, mas não da forma como pensas! O que te falta para retomares tua vida serenamente?, pergunta Gaiateo. Desesperado ele procura sua mulher, a linda jovem Bellaal, e ao encontrá-la brada: – Vais seguir comigo a jornada de volta? Queres ficar comigo mesmo não concordando com a forma como penso em resistir aos ataques? De onde vem essa tua dúvida, responde Bellaal? Por que a insegurança? Alguma vez dei a entender que iria te abandonar? Há alguma coisa na minha postura que te causa tanto medo de ser abandonado? 

Perto da aldeia Tamitov, Gaiateo olha docilmente a cena. Diz a todos que era para ficarem ali esperando. – Esperando o quê?, pergunta Taciturnus. O  momento certo, responde o sábio!! Qual é o momento certo?, retruca. O momento de apascentares teu espírito, olhares ao redor e perceber que o povo Graev nunca foi inimigo e que somente tu atribuis um sentido à invasão que de fato nunca existiu. Fecha os olhos!!!, pede Gaiateo, – Mentalize...

Ao abrir os olhos, o povo Graev havia desaparecido!!!








Entrevista com Arton, de Sirius. Parte II

  Entrevista realizada no dia 14 de fevereiro de 2024, às 20:00, com duração de 1': 32'', gravada em um aparelho Motorola one zo...